domingo, 10 de julho de 2011

Na boca do lobo
Emanoel Barreto

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Leio estarrecido reportagem de Maiara Felipe n'O Poti sobre o Hospital Walfredo Gurgel. Segue abaixo transcrição parcial. Trata-se de jornalismo do bom, vivido, experienciado, repórter passando a vida por dentro. Confesso, dá medo. A quem estamos entregues? Encontro, à minha pergunta, duas respostas; primeira delas: pelo que li no texto, estamos entregues a médicos que fazem de tudo para atender, sob condições de adversidade que se aproximam do desespero, a gente que foi vítima de uma guerra. No caso, a guerra de um Estado omisso, regido por política de saúde irmã geminada do caos. Segunda resposta: estamos entregues ao deus-dará, ao improviso, à decisão do médico em salvar. Salvar dentro do possível, claro.

Mas, diante dessa situação temos o reverso da medalha: são os planos de saúde. Geridos por empresas que adentram o mercado cientes de que o Estado brasileiro falhou historicamente nessa missão. Mas falhou por falta de vontade política. Dinheiro há, tenho certeza; o que falta é transformar esse dinheiro em verbas, dar-lhe destinação social. Mas a prioridade não é o social. É o interesse político mais rodapé, pedestre e reles. Fazer de conta que se atende ao, vá lá, povo, e seguir adiante de qualquer jeito.

Mas, falava eu sobre os planos de saúde. Eles são, pelo menos se apresentam assim, como o contrário do caos. São o não-mundo, a não-realidade, o privilégio comprado a preço-ouro. Por que "não-mundo", "não-realidade"? Simples: o plano de saúde é uma espécie de seguro contra os maus serviços do Estado. Algo que você paga pedindo a Deus para não ter de usar. O plano dá a sensação de que estamos a salvo, estamos fora da realidade das pessoas comuns, aquelas sujeitas ao cutelo do atendimento improvisado e malfeito. Temos o privilégio de ser doentes especiais, com caminha boa e serviço confiável. Doentes que pagam para ter o insidioso direito de ficar doente do jeito certo. 

Todavia, a realidade é larga como um abismo e profunda como uma fossa oceânica. O Walfredo Gurgel, lembremos, é hospital de urgências. Quer dizer: votado ao atendimento de casos onde as pessoas são vítimas da brutalidade da vida. Mais claramente: qualquer um pode, em situação que tal, ser levado para lá. Um acidente de carro, um assalto, coisas assim, compreende? E aí, salve-se quem puder, pois não há plano de saúde que garanta a segurança de ninguém. Fico por aqui. Leia o texto de Maiara.
 
Walfredo Gurgel: por dentro do caos
O Poti/Diário de Natal acompanhou o sofrimento de funcionários e pacientes em um plantão de 12 horas no maior pronto-socorro do RN

A ineficiência do sistema de saúde pública do Rio Grande do Norte é responsável, direta ou indiretamente, por danos irreversíveis e até pela morte de muitos potiguares, mês a mês, ano após ano, em situações cotidianas que lembram as vividas em um estado de guerra. Pode se dizer responsável diretamente quando a referência é, por exemplo, a de um dos idosos que está entre as 22 pessoas que aguardam nos corredores do Pronto Socorro Clóvis Sarinho, no Hospital Walfredo Gurgel, por um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Indiretamente, quando se observa as condições de trabalho dos profissionais do hospital que fazem um esforço sobre-humano para preservar a vida daqueles pacientes, abarcando para si graves consequências físicas e psicológicas em função disso.


A superlotação gera a já tradicional e dramática cena de filas de pacientes no corredor do hospital Foto:Maiara Felipe/DN/D.A Press
Mesmo sem material, sem leitos, sem condições adequadas de atender o cidadão, no "coração de mãe" do Walfredo Gurgel sempre cabe mais um. Cabe o doente do interior do estado, encaminhado pelos hospitais regionais sem condições de atender os casos de maior complexidade. Cabe o rico e o pobre que venha a sofrer qualquer tipo de acidente. E, apesar da generosidade de sempre acolher mais um "filho", é visível que esse "coração" sofreu um infarto e precisa urgentemente que o poder público tome uma providência para salvá-lo, interrompendo o ciclo de mortes. Mensalmente o Governo do Estado aplica no hospital R$ 10 milhões, que não estão sendo suficientes para receber dignamente toda demanda.

A equipe de O Poti/Diário de Natal passou 12 horas - período que normalmente dura o plantão dos médicos e enfermeiros - dentro do único hospital de urgência traumatológica do estado. No dia 2 de julho, por volta das 7h30, entramos no Centro Cirúrgico, primeiro setor a ser visitado. Na ocasião, o Centro de Recuperação Operatório (CRO) estava lotado. Os pacientes eram levados para o corredor após os procedimentos cirúrgicos. O Centro tem nove leitos, mas o número de pessoas lá dentro passava de 20, sem contar os que ficavam do lado de fora. "Os casos mais críticos ficam lá dentro", explicou o médico. Das seis salas destinadas às cirurgias, duas estão paradas. Uma com o foco do iluminador quebrado e outra interditada por falta de gás no respirador.

Mas, apesar dos problemas, o trabalho não para. Um dos primeiros procedimentos acompanhados pela reportagem na manhã de sábado, foi o de Marcos*, 10 anos, morador do município de Macau. Ele caiu e fraturou o punho e os médicos decidiram fazer uma redução de fratura no seu braço. O procedimento durou cerca de 20 minutos e ocupou uma das salas do Centro Cirúrgico que funcionam atualmente. "O médico de Macau disse que lá não fazia e mandou a gente vir para o Walfredo", justificou a mãe de Marcos sobre o motivo de se deslocar cerca de R$ 180 quilômetros para solucionar uma pequena fratura.

Enquanto Marcos era operado, Juvenal Bispo da Silva, 69 anos, que também caiu em casa, aguardava dentro do consultório do ortopedista, em cima de uma mesa, por uma maca. "Ele veio transportado dentro deum carro de forma inadequada. A suspeita é que ele tenha fraturado o fêmur, mas estamos aguardando desocupar uma maca para ele poder fazer o raio-x", esclareceu o médico de plantão. Segundo relatos da família, o atendimento inadequado começou já em casa. A esposa disse que a ambulância do Samu não considerou o caso de Juvenal urgente e, por isso, ele veio de Ceará Mirim até o Walfredo em um carro fretado e foi conduzido ao consultório em cima de uma tala de madeira, que serve apenas para imobilizar o paciente.

O idoso ficou em cima da mesa onde o médico atendia outros pacientes por 2 horas, tempo depois do qual conseguiu uma maca, fez o raio-x e se internou no corredor, onde fica situada a urgência dos casos de clínica médica e tem mais 54 pessoas. Por trás da parede onde Juvenal ganhou seu "leito", funciona a sala de observação da urgência em clínica médica. O local deixou de ser uma sala de acolhimento de pacientes há muitos anos para se transformar no espaço considerado "privilegiado" na estrutura do hospital, onde ficam pessoas que aguardam por um leito na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Lá, estão respiradores, que amenizam a angústia de quem necessita da UTI, como Geraldo de Holanda, 75 anos, há 12 dias aguardando uma vaga na sala de reanimação. É que no Walfredo, diante da exorbitante quantidade de pacientes que chegam todos os dias, a sala de reanimação é o primeiro passo antes de conseguir uma UTI. "Ele está cansando, tanto é que quando chegou aqui já foram logo entubando. A médica disse que ele deveria ficar na reanimação, já que não tem vaga na UTI, mas a reanimação também está cheia", disse a acompanhante de Geraldo, que, além da idade avançada, é dependente de hemodiálise duas vezes por semana.

*Os nomes não são verdadeiros para presevar os personagens.

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