quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O inquérito
Emanoel Barreto

Passava pela Rua dos Inquisidores quando foi abordado: - O que faz aqui?
Respondeu: - Estou andando.
O Inquisidor, como é próprio dos inquisidores, desconfiou de tão estranha resposta. E inquiriu: - Andando? Com que finalidade?

- Andar, apenas andar.
- Andar a esmo?
- Sim.
- Pode não. Andar a esmo é sinônimo de vadiagem. Assim, a partir deste momento considere-se preso - determinou o inquisidor.

Ele pensou um pouco e disse: - Mas preso, assim, sem inquérito nem nada?
- Ah!, reivindica seu direito a um inquérito? - objetou o inquisidor.
- Claro, todo cidadão tem direito a um inquérito - defendeu-se.

- Pois bem - continuou o inquisidor - democraticamente, terá o seu inquérito. E competente inquérito, diga-se de passagem. Inquéritos competentes são os melhores, sabia? É um privilégio ter direito a um competente inquérito.

Respondeu: - Muito obrigado. Posso ir então?
Inquisidor: - Claro que não. O inquérito vai começar. Direito a inquérito é como direito a voto: é direito, mas também é obrigação. Pronto para começar a responder?

- Já que não tem jeito...
- Não. Não tem jeito. Sendo assim, comecemos a qualificação do réu. Primeira pergunta: tem profissão?
- Tenho não: sou jornalista.
- Sabe ler e escrever?

- Claro que não.
- Ótimo. Muito bom. Jornalistas que não sabem ler nem escrever são os melhores. Quer ter direito ao uso de algemas?
- Claro, claro que quero. Se é um direito, exijo.
- Que conste no inquérido: o réu exige o direito a portar algemas. Pronto: já está algemado. Mais alguma coisa?
- Posso ser levado a cárcere secreto e ficar incomunicável?

- Sim, sim, sim. Claro que pode. Pronto: já está algemado e colocado em cárcere secreto e incomunicável. Tem mais alguma habilidade, além de não saber ler nem escrever?
- Sim.
- Qual?
- Surdo e mudo.
- Excelente. O senhor está me saindo melhor que a encomenda. Um réu de primeiríssima qualidade.

- E agora, posso me defender?
- Obviamente que não: defesa só por escrito ou sustentação oral. Como não escreve, não fala, não ouve, perdeu o direito de defesa.

- E se eu for cego, isso tem alguma vantagem? Juridicamente falando, quero dizer.
- Mas é claro que ser cego é uma vantagem. Não verá quando se aproximam os chicoteadores, uma divisão especial dos inquisidores.

- Ótimo. Como não vejo os chicoteadores, não vejo o senhor e nem mesmo sei onde estou, sinto que estou livre para continuar andando.

-Mas isso é vadiagem e o senhor volta à situação inicial.
- Volto não. Vadios  não param em lugar algum. É da nossa natureza. Obrigado, vou embora: redigir no meu jornal o que não sei escrever, contar o que não vi e escapar rapidamente. E sabe o que mais? Sabe qual a minha manchete?

- Não - respondeu atônito o inquisidor.

- A manchete será o seguinte: "Inquisidor inepto é enganado por cego que é mudo, mudo que é surdo e surdo que é jornalista que não sabe ler nem escrever". Destarte, não brinque com a imprensa, senhor. Só aparentemente somos fracos, surdos, mudos, cegos e analfabetos. Já pra casa. E, no caminho, compre o meu jornal.