sábado, 15 de novembro de 2008




Ele queria liberdade; a família, dinheiro
Emanoel Barreto

Tornou-se bastante comum a utilização, pelo establishment, da memória de pessoas que lhes foram contestatárias, em proveito ideológico ou econômico do próprio sistema. O caso mais evidente é Guevara, na foto imortal de Alberto Korda, em 5 de março de 1960, Cuba. A reprodução que você vê acima é da foto original, da qual foi realçada unicamente a imagem de Guevara, excluindo-se a figura do homem a seu lado.
O guerrilheiro teve a imagem ampliada, ganhou discursividade visual, tornou-se penetrante, enigmática, desafiadora às interpretações. Expressa uma grandeza humana e trágica, um destino brotado na alma e palmilhado à força da coragem e doação. Guevara, o olhar perdido, encarnando o mito rebelde. O comandante traz um semblante crístico, revestido de aura heroicizada; o homem cara a cara com os desafios de sua existência e da sina de existir e combater - paixão.
Hoje, essa foto pode ser vista em milhares de camisetas e posters em todo o mundo. Como já se distancia no tempo sua epopéia guerrilheira, muitos não sabem exatamente quem foi, o que fez, como se desenrolou o seu calvário. Mas, mesmo assim, jovens o vestem como uma figura enigmática; vestígio de algo que não compreendem, mas, maquinalmente, cultuam; é moda, é fashion. Rende lucro a tudo o que ele combateu.
Quanto à outra foto, a de Martin Luther King, diga-se: ele, que foi um lutador pelos direitos civis dos negros americanos, certamente estaria cabisbaixo e meditando a respeito do que os seus familiares estão fazendo: como muitas fotos suas estão sendo estampadas em buttons e camisetas pelos Estados Unidos, ao lado de fotos de Obama, seus filhos, ao invés de verem nisso uma reverência à figura histórica do pai, reclamam: querem direitos de herança sobre a sua imagem, literalmente direitos autorais, querem... dinheiro.
É sempre assim: pessoas exponenciais, revolucionárias, são transformadas em ícones de causas que historicamente já não mais se postam e não mais ameaçam o sistema. Isso se dá porque os objetivos de tais causas ou foram alcançadas, como é o caso dos direitos civis dos negros, ou não mais se justificam, como é a questão de Guevara, uma vez que a questão da luta pelos direitos dos oprimidos se faz por outras vias que não a da luta armada.
Assim, esses vultos são anexados, indexados aos valores da sociedade de mercado e de consumo, e passam a ser vendidas fotos ou outras representações suas, estimulando os apetites até mesmo de quem lhes deve respeito, como é o caso dos familiares de King.
Mas é assim mesmo: o que é transgressão hoje, passa amanhã a ser algo institucionalizado, rende lucros, dividendos e ganância remunerada de quem sabe com isso lidar.
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República e Liberdade Walter Medeiros
O auditório do Centro de Convenções de Natal repleto de advogados e convidados, todos de pé aplaudindo emocionadamente. No ar uma mensagem ecoava alvissareiramente; o Estado Brasileiro acabara de pedir desculpas pelo que foi feito ao cidadão perseguido número um na ditadura militar. E nos telões espalhados naquele imenso salão uma voz latina cantava em tom de bravura, enquanto eram exibidas imagens através das quais a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça homenageava o ex-presidente Jango.
Bela forma de comemorar o aniversário da Proclamação da República. Era o evento que precedia o encerramento da XX Conferência Nacional dos Advogados do Brasil, uma reunião da Comissão de Anistia com a presença do Ministro da Justiça, o Presidente do Congresso Nacional, o Presidente da Câmara dos Deputados, a Governadora do Rio Grande do Norte e o Prefeito de Natal, cidade tão presente nas lutas libertárias. A Caravana da Anistia fazia-se presente agora entre advogados, depois de passar por momentos importantes na ABI, UNE e CNBB, entre outras entidades.
Momento histórico, uma aula prática de História do Brasil. João Belchior Marques Goulart e Maria Tereza Fontella Goulart seriam anistiados na forma do conceito de Justiça da Transição, que subentende a idéia da verdade, a reparação do Estado pelas perseguições e injustiças, aplicação do princípio da justiça e reforma das instituições, tudo através da incorporação dos valores dos Direitos Humanos e da Democracia.
O processo de anistia de Jango registra as marcas do seu governo, destacadamente as reformas de base e o fortalecimento das empresas nacionais. Mostra que ele foi deposto e banido, tendo de deixar o país de forma precária e arriscada, com a mulher e dois filhos menores. E propõe a reparação pelo que ele passou no exílio, vivendo no Uruguai e na Argentina. O requerimento foi acatado pelo relator, conselheiro Egmar José de Oliveira e a anistia concedida por unanimidade.
Ao proclamar o resultado do julgamento, o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão asseverou que “valor nenhum paga a dor e o sofrimento do cidadão banido”. Recebeu aplausos demorados de uma platéia que viu em seguida o Ministro Tarso Genro formalizar o pedido de desculpas no qual o Estado Brasileiro reconhece os erros do passado perante a família de Jango, diante do seu neto Christopher Goulart, de 32 anos, também advogado. “Um dia dos mais importantes para a nossa história”, considerou o presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Cezar Britto.
Naquele auditório encontravam-se pessoas emocionadas, olhos marcados pelo fato vivo, que as remetia ao passado de arbítrio, deportações, banimentos, perseguições, prisões, tortura, demissões. Um passado de incertezas para quem lutava pelas liberdades democráticas e pelo Estado de Direito. Um passado que mudou pela violência o rumo da vida de tantos brasileiros. Um passado, segundo o documentário da Comissão de Anistia, para não esquecer, um passado para nunca se repetir. Um passado no qual era proibido cantar o Hino da República, porque nele é feito o apelo maior: “Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós”.

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