sábado, 29 de abril de 2006

O estranho visitante

"É a volta do cipó de aroeira
no lombo de quem mandou dar."
De uma canção de Geraldo Vandré

Era a noite de um estressante dia de trabalho na redação da Tribuna do Norte. As máquinas de escrever, paradas, silenciosas, eram testemunhas do trabalho de finalização do jornal. Eu estava cumprindo mais uma jornada de trabalho diária de cerca de dez horas, atuando numa espécie de fleuma da exaustão: um cansaço metódico e vigilante dirigia meus passos de editor da página cinco, o noticiário sobre Natal.

O negócio funcionava assim: eu fazia a pauta do jornal, e tinha de chegar às seis da manhã; era o chefe de redação e tinha de ficar os dois expedientes; era o editor da página e por isso era obrigado e seguir noite adentro. Somando tudo, dava essas dez horas de trabalho diário. Eu não tinha qualquer intenção hegemônica ao assumir tantos cargos de uma vez só, só se fosse louco: o problema é que a estrutura do jornal era ruim, tão ruim, que tudo acabou por ruir, ou pesar, pesarosamente, sobre os meus ombros.

Na redação, comigo, somente a diagramadora Tânia, que respondia pela programação visual de várias páginas, o que incluia a página cinco. O jornal usava máquinas portáteis, o que facilitava o trabalho. Podia-se pegar a máquina, colocar sobre a mesa da diagramadora e ali mesmo ir titulando as matérias e determinando sua disposição na página.

As redações são assim: vulcões que começam a fervilhar pela manhã, se aquecem ao longo do dia e afinal explodem numa multidão de repórteres apressados no final da tarde, todos colaborando com a grande lava que sai de suas mãos apressadas, numa torrente de textos e de fotos que fervem e se apagam na edição do dia seguinte, não sem antes trovejar sobre os leitores manchetes, gritos, dores e, às vezes, alguma boa notícia.

Pois bem: eu estava já no entrecruzar entre o cansaço e a resistência, quando, sem ser anunciado, silenciosamente um homem de uns trinta e poucos anos cruzou a redação como uma sombra. E essa sombra, de repente, estava ao meu lado. Só notei sua presença quando ele me disse: - Boa noite...

Virei-me e automaticamente respondi ao cumprimento. Não é comum o comparecimento de pessoas estranhas à redação em horários com o aquele. Esqueci de dizer, mas já era mais de oito de noite. E o ano creio que 1980, ditadura em seus momentos finais.

Em seguida, olho no relógio, perguntei: - Sim? - e ele, em rápidas palavras, contou-me que era funcionário do Ministério da Educação, mas especificamente de uma universidade federal (não me lembro de qual) e que estava sofrendo perseguições. Tanto, que vinha sendo transferido sistematicamente de uma universidade para outra tão-logo se organizava em uma cidade. Assim, de mudança em mudança, foi mandado para Natal.

E aqui, continuou, para completar, estava sofrendo ameaças telefônicas. Não precisa dizer que o homem era um dissidente do regime de 64.
Ainda de olho no relógio expliquei que estava no fechamendo da última página; tinha todo o interesse em seu caso, mas pedi que esperasse somente coisa de quinze a vinte minutos, que logo o atenderia.

Nem pensei em lhe explicar que eu de alguma forma também era um fugitivo, ou perseguido, fugitivo e perseguido por aquele expediente que não acabava nunca, por aquelas notícias que jamais paravam de chegar e pela organização do jornal, que levava o fechamento para horário tão tardio.

Fui obrigado a protelar a entrevista, de resto importantíssima: um perseguido político sendo ameaçado na UFRN pelos agentres do regime. O problema era o seguinte: caso eu tomasse decisão contrária, estaria provocando um grave problema de cronograma de fechamento, com pesadas repercussões na área industrial do jornal: o trabalho do parque gráfico. E olhe que, em relação aos tempos de hoje, um fechamento de página interna as oito de noite é inaceitável.

O homem, uma figura de aparência tristonha, cabisbaixo, concordou. Mas foi a concordância dos que não têm outra alternativa, a não ser abaixar a cabeça. Fui tomado por um sentimento de compaixão: estava ali um homem que não tinha a quem apelar, nem à justiça, nem a amigos que certamente não tinha em Natal, muito menos à polícia ou às autoridades.

Restava-lhe apenas procurar esconderijo e proteção no jornal, no escudo de papel de que muitas vezes se vale a sociedade para fazer valer os seus gritos. Escudo que muitas vezes se rasga e dá acatamento às decisões dos fortes e dos brutamontes econômicos, em detrimento do trabalhador e dos desvalidos.

Assim, viu no jornal sua última chance, a talvez única oportunidade para dar um grito de tinta e dizer:"Eu estou sendo perseguido no silêncio dos medos tramados; eu estou correndo perigo de vida; estou sob a mira de uma arma invisível e ninguém, ninguém, quer me ajudar. Agora, pelo menos quero contar tudo isso. E mesmo que eu desapareça em alguma esquina noturna, vocês saberão que eu existi."

Concentrei-me na edição da página. O tempo passou. Tempo pouco, coisa de nada, coisa de quinze minutos a mais, se muito. Terminei afinal. Eu estava com Tânia no "aquário", uma sala que tem uma parte da parede em vidro. Dali podia ver toda a redação. Terminei e disse "pronto!" bem alto, anunciando ao estranho visitante que agora poderíamos conversar.

Enquanto dizia aquela única palavra eu me virava. Foi um movimento rápido, mas hoje, quando o fato é lembrança, é como se as coisas tivessem acontecido em câmera lenta: meus olhos fizeram uma varredura de 180 graus e... lá estava ela. Em lugar do homem, uma solidão intensa; em lugar do ser humano ferido de amarguras, uma cadeira vazia; em lugar de quem sabe um futuro amigo, a presença de uma saída, talvez até mesmo uma fuga para a noite fechada da velha Ribeira. O desespero de alguém sem rumo.

Vencera a desesperança, tinia a vitória do desencanto. Meus quinze minutos foram para ele uma eternidade. E ele correu de volta aos seus horrores, sumindo-se para sempre e deixando na redação silenciosa uma espécie de vento frio de um medo que era só dele. Um medo que, por causa de quinze minutos, não pude compartilhar, nem tentar resolver. Lamento muito, estranho amigo. Lamento muito...

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