segunda-feira, 24 de abril de 2006

O contar de horas

Recebi de Alberto Barcelos a crônica que segue. O autor já foi escolhido como "Colunista da Semana" pelo Jornal do Brasil on line, quando publicou o texto que agora me envia. Vale a pena.


O prazer pode decepcionar;
as possibilidades, nunca.
Soren Kierkegaard

Um novo despertar, para uma vida que continua! Esse encontro, numa idade provecta, soa como arrependimento pelas horas perdidas de um sono, justo e merecidas, porém incapaz de descontar nas horas poucas que me restam.Aos oitenta, após vinte e nove mil e duzentas em que o processo se repetiu, deveria ter se estabelecido com a vida uma condicionante de não mais acabar, esquecendo-me que ela nada mais é que uma fuga da morte.

Rejeito a idéia e olho para o outro lado da cama: uma linda mulher, cheia de vida, divide comigo o espaço para dois, onde quarenta anos nos separam no tempo e em nossos desejos, embora reste uma tênue esperança de fazer com que esse relacionamento não se acabe.Sorrateiramente, afasto o lençol que nos cobre. O dorso nu da mulher amada aparece numa exuberância sem limite e seus dois faróis apontam para mim, como um desafio fosse. Suavemente cubro o que imagino ser só meu...

Levanto, pé ante pé, para preparar nosso desjejum, embora saiba que ela dormirá por bom tempo. Um hábito e um direito adquiridos por ela, quando há três anos, reúnem interesses comuns. Suco de laranja, mamão papaia e torradas de pão integral, dispostos em bandeja de prata, aguardam seu despertar, ao seu lado da cama.

As páginas do jornal que viro, em busca de recomendações de investimentos vantajosos, não podem, no seu farfalhar, despertá-la. Só acontecerá de forma espontânea, quando seu subconsciente chamá-la para a vida.Um breve sussurro, um espreguiçar de braços, gestos incapazes de manter o linho que cobre seu corpo, esconderem um tesouro que nele existe e, lá com seus botões, deve lembrar de Ana Carolina: “Tô nem aí!”

Meu córtex cerebral reage a um passado de cinqüenta anos atrás, desgastado pelo fisiologismo do sistema, de estimular a supra-renal da libido necessária para acontecer... Um sorriso franco, vendo meu carinho renovado, e um desabafo sincero: - Meu coronel!

A consciência da verdade cala fundo. Ontem foi um vestido. Hoje certamente será um sapato, e amanhã o anel pela comemoração do dia dos namorados.Porém, não concordo com tudo que ela sonha. A aliança, símbolo de uma união para sempre desejada, nego definitivamente.É a vingança de quem conta as horas, esperando o relógio parar!

3 comentários:

Anônimo disse...

Como você, também espero pelo "Contar das Horas", que parecem-me muito próximas.
Seu conto é de uma verdade expressa com sentimento, verdade,lirismo e tom sarcástico.
Parabéns pelo desfecho. Ao "Contar das Hhoras", talvez os ponteiros dos nossos relógios se desencontrem, tomando rumos diferentes. Até lá...

Anônimo disse...

Alberto, já li sua crônica no "Café Literário", mas confesso gostei mais da forma como foi publicada em "Coisas de Jornal".Ficou mais sugestiva: "...o farfalhar das folhas de jornal"; "... meu coronel"; " ...a vingança de quem espera o relógio parar". Brilhante!!! Deve ser muito sedutor!!! Zilda

Anônimo disse...

Ratificando o anonimato: subscrevo-me sua admiradora incondicional. Zilda