sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A quarta-feira de cinzas do réveillon

Por Emanoel Barreto

Hoje é a quarta-feira de cinzas do réveillon. Muitos dos que festejaram o Ano-Novo estão espichados nas areias das praias ou espojados em suas camas, enevoados pela  ressaca da insensatez. Depois vão acordar para a realidade.

E a realidade é a seguinte: em mais alguns dias muitas dessas pessoas estarão nas redes sociais alarmadas com os sintomas da covid, pedindo orações e clamores para escapar das previsíveis consequências de ajuntamentos em tempos de peste.

As multidões que acorreram ao chamamento pelos festejos são explicáveis, enquanto fenômeno, por múltiplos conhecimentos acadêmicos que vão da sociologia à psicologia social, da antropologia social às teorias de comunicação e, claro, dos estudos sobre ideologia.

Não é o caso deste artigo tratar do fenômeno da alegria descontrolada e aluada enquanto objeto de interesse acadêmico. Estou aqui para expressar não só  indignação com  tal comportamento – e lamentar a omissão das autoridades de todo o país na repressão aos ajuntamentos – mas especialmente para manifestar minha perplexidade.

E faço uma pergunta: por que uma pessoa adulta e informada a respeito do perigo busca esse perigo? Vale a pena morrer por uma taça de champanhe, uma caneca de chopp, uma boa dose de cachaça, um uísque, um brinde?

Creio que os valores de uma sociedade voltada para o ter acredita de forma difusa que esse ter significa possuir até mesmo o tempo – o tempo da festa, no caso – como se fosse possível, nesse tempo, haver felicidade e segurança na busca do estar alegre e sentir-se indomável e vencedor: senhor da vida, parelha da mesquinha  eternidade daquela glória boba e seus momentos de euforia que tanto iludiram o inebriado herói de Baco.

O pior é que o preço a pagar será cobrado também aos que não foram às festanças, a conta irá aos que vão lotar hospitais e UTIs, às famílias que perderão filhos, pais, mães e avós.

As multidões de pessoas vazias se desfizeram. A festa acabou. O estado socialmente líquido de tais encontros escorreu pelo esgoto do cansaço e da exaustão dos bacantes e agora eles dormem.

O tempo não para e amanhã vai ser outro dia. E esteja certo: por causa do réveillon cuidado, há perigo na esquina.

 

 

 

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