quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Memórias: minha homenagem ao Dia do Repórter


A cobertura da enchente em S. Gonçalo, feita em lombo de cavalo. Eu sou o terceiro, da esquerda para a direita

A enchente que quase vira um rio de sangue

A história que vou contar aconteceu num dia qualquer de junho de 1976. Eu trabalhava na Tribuna do Norte e nesse dia, sem motivo algum, uma vez que minha pauta sempre era para a tarde, saí de casa e fui até a redação. Péssima ideia. Primeiro, porque chovia muito; segundo, porque aquilo que seria uma passadinha rápida no jornal transformou-se numa cobertura exaustiva que quase acabou em cena de sangue num bar em São Gonçalo do Amarante.

Foi assim: logo que cheguei à redação, encharcado até à alma, encontrei Agnelo Alves, jornalista e um dos donos da Tribuna, procurando um repórter para ir a São Gonçalo. A chuva estava provocando uma arraso na cidade, especialmente na periferia. Não deu outra: na hora fui escalado para cobrir o assunto. Quem pedia a cobertura era um aliado dos Alves, opositor do prefeito de então.

Em minha companhia iria um fotógrafo conhecido como Anjinho. Seu nome era Antenor, Antenor não sei o quê, já que nunca lhe soube o sobrenome. Mas soube, muitíssimos anos após, que morrera, pobre e sofrido. Anjinho, como Ferdinando, aquele personagem dos quadrinhos, era enorme. Como o personagem tinha físico maciço, era de uma doçura sem limite, ou seja: era grande , poderoso e inofensivo. Inofensivo como um boi manso.

 Não era fotógrafo de campo. Trabalhava no laboratório, revelando e copiando as fotos. Não tinha – como Iremar Araújo, o Bárbaro a que me refiro em texto que você pode ler logo abaixo deste –, o fogo, a chama, o pipoco do profissional de talento. Anjinho era um Hércules atencioso, Iremar um capetinha de pouco mais de metro e meio de altura.
Pois bem: entramos no carro do tal aliado de Agnelo e partimos. Sequer tive tempo de telefonar para casa, avisando que como sempre não teria hora de voltar.

Chegando a São Gonçalo encontramos a cidade mergulhada. Demos uma geral no centro e nos bairros e em seguida fomos aos distritos, literalmente uma banheira. Pior: um grande atoleiro. Pois foi com esse atoleiro monumental que o carro 
teve de se haver até chegarmos às margens de um rio que aterrorizava os ribeirinhos.

A primeira cena foi desoladora: um casebre inclinado sobre a margem dava a impressão de desabar a qualquer momento. A água era torrente. O dono daquela lamentável habitação era desespero puro. Aproximei-me dele, apresentei-me e dei de cara com a mais inusitada resposta à minha pergunta. Eu queria saber quando a água começara a invadir a sua casa e ele disse no ato:
– Só respondo se você me garantir a construção de uma casa nova. Garante?

Ora, aquela pobre alma certamente não sabia que um repórter jamais poderia assumir aquele compromisso. Primeiro, porque o salário não dava; segundo, porque, sei lá porquê, só sei que não dava para fazer aquela promessa. Insisti com a pergunta e ele respondeu da mesma forma. Então entendi tudo: eu estava na companhia de um político. E como na visão de pobre político sempre é um tipo que promete coisas em troca de votos, deve ter pensado que eu queria extorquir seu voto como geralmente fazem os políticos.

Assim chegamos a um pequeno impasse. Usando de toda persuasão possível expliquei que aquilo era uma entrevista e que a denúncia da sua situação poderia provocar, da parte da prefeitura de São Gonçalo, alguma assistência. 

– Pior não pode ficar – argumentei. Ele então aceitou e contou sua tragédia. Pobre só conta tragédia. A chuva começara perto da meia-noite e fora engrossando até chegar àquele ponto: o rio cheio de barreira a barreira e a casa quase caindo, tal a força do aguaceiro.
Relatada a situação partimos para outro local. Aí a coisa estava realmente feia: as pessoas estavam ilhadas. Quer dizer: em situação bem pior que o pobre da casa quase caída. Aquele ainda poderia pedir algum tipo de ajuda, buscar abrigo ou receber comida; os que estavam ilhados viviam situação mais deplorável sem ter como escapar ou receber ajuda. 

O carro seguiu patinando na lama até chegarmos a outro impasse: dali para a frente o carro não ia. Era lama demais, água demais. Era entrar e atolar. Entrar e atolar, não: entrar e afundar. Então, não se sabe de onde, apareceu alguém com uns cavalos.
– Vamos? Vamos montar? – disse o sujeito que me havia atraído àquele enrascada. Fazer o quê? – respondi: – Vamos, não é? – e fomos. Detalhe: eu montara a cavalo somente uma vez, quando menino, ou seja: não tinha prática para aquelas investidas. Mas, enfim, montei no matungo que me foi destinado e aí começou um martírio. Veja bem: Anjinho fez a foto que você viu aí acima, esporeou sua montada e juntou-se ao grupo. 

Enquanto isso, o miserável animal que me fora destinado começou a fazer das suas: suspeito que aquele bicho tenha sido cavalo de carrossel, pois somente sabia rodar da direita para a esquerda e, quando estimulado por mim na tentativa de acompanhar a cavalgada, fazia o inverso. Quer dizer: eu estava metido numa situação dos diabos, pois os demais já de distanciavam. E o sórdido cavalo girando o tempo todo.

Quanto percebi que estava vivendo uma lamentável loucura, algo ridículo ou quase isso, gritei para que me esperassem. Certamente dominados por algum espírito bondoso, todos pararam. Enfim, meu medíocre animal aceitou seguir em linha reta e conseguir juntar-me ao bando. 

Caminhamos com água batendo no peito dos cavalos, fomos a vários locais devastados e prosseguimos adiante. Enfim, a coisa piorou de vez: chegamos a um ponto tão terrível que nem mesmo os cavalos poderiam ultrapassar. Se os cavalos se metessem, a lama, funcionando como terreno movediço ameaçava tragá-los. E a nós também. Certamente iríamos parar no centro da Terra, não tenha dúvida. Do mesmo modo como os cavalos nos tinham sido trazidos, alguém apareceu com um trator. Somente de trator poderíamos chegar adiante.

Seguimos naquela maquina monstruosa até paragens distantes. Pegamos depois umas canoas para ir mais adiante, pois a coisa mais e mais se complicava. Nesse ponto comecei a ficar com medo. Quem remava a canoa onde eu estava era Anjnho, do algo do seu metro e noventa pesando coisa de cem quilos ou mais. Seguinte: quando ele ficava de pé a precária embarcação adernava para um lado e para o outro. Afinal consegui convencê-lo a remar sentado a fim de evitar que a reportagem terminasse como notícia da morte do repórter. 

Agora, veja bem: tínhamos saído de Natal coisa de nove da manhã e já então era coisa de três da tarde. Sem comer e sem beber nada. Sabe o que é nada? Nada? Isso mesmo: nada. Por um momento tive a maldita ideia de pegar água do rio com as mãos e beber. Mas ante o temor de contrair alguma miserável doença e passar o resto dos meus dias largado num hospital me fez afastar-me de tão louco propósito. 

Mas, enfim: depois de muita luta terminou o trabalho de apuração, toda a situação fora registrada e aquela desconjuntada expedição resolveu voltar. Ainda bem. Mais mortos que vivos saímos das canoas, pegamos o trator, voltamos aos cavalos e afinal chegamos ao carro.

Estávamos cobertos de lama. Uma lama barrenta, que aderia às roupas e aos nossos corpos. Do jeito estávamos entramos no carro. Na volta, aos pedaços, paramos num restaurante.  Aí a coisa ficou assumiu aspecto aterrador.

Venha comigo e observe: o restaurante, popular, estava lotado. Entre as mesas inocente menina vendia votos para concurso de rainha do milho. Sabe como é: a menina que vender mais votos ganha o concurso de rainha do milho e dá o dinheiro à escola. Pois bem: depois de vender uns votinhos em varias mesas ela dirigiu-se a um grupo de homens de má aparência. Foi tratada princípio com desdém e depois com grosseria.

Eles não notaram, mas haviam feito muito mal: numa mesa próxima estava o pai da garota. Era um tipo alto, mais alto que Anjinho, mais forte que ele e, ao contrário do meu colega, era um bruto. O sujeito tinha um bigodão preto que descia de um lado ao outro do queixo. Sentado numa cadeira deixava à mostra, na cintura, às costas, o cabo de uma faca de doze polegadas, também conhecida nos ambientes de valentões sertanejos como viana ou santa-maria. Só que aquele tipo de santa, na mão do pai da menina, somente obraria milagres do mal.

 O minotauro percebeu o destrato da criança e ficou eriçado. A mão direita conferiu se a arma estava a postos, agarrou-a. Em seguida minotauro levantou-se e se preparou para avançar contra o grupo. Alguém a seu lado teve o bom-senso de agir rápido e o controlou a custo. A quase briga não passou de um susto.  Ainda bem, a nossa mesa estava a menos de dois metros da confusão. 

A caminho do jornal, o carro zunindo na pista molhada acudiu-me a seguinte ideia: ainda bem que eu estava apenas coberto de lama: como isso só acontece com jornalista, eu tinha ido cobrir uma enchente e podia ter voltado como testemunha de um rio de sangue e feito a reportagem ao vivo do crime. Por mais vermelho que seja, todo crime é sempre em preto e branco.

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