terça-feira, 8 de novembro de 2016

Revendo um velho texto que me comoveu

E foi só pra receber um pedaço de papel

(Emanoel Barreto, setembro de 2010)

Tenho dificuldade em viver situações cerebrais; situações em que valem esquemas mentais lisos, rapados como tábua que acabou de sair da carpintaria. Tenho dificuldade em conviver com grupos que pensem de forma matemática. Prefiro a diversidade da vida ao numérico; as coisas arriscadas da escrita ao que já esteja com final antevisto; as coisas que podem se desvencilhar do estrutural e do planejado, do programado e reto e, por isso, estático de nascença. A matemática não erra nunca e isso, para mim, não tem graça.


Certa vez, isso há anos, quando ainda fazia o mestrado, participava de equipe de pesquisa social muito rígida. Muito competente e séria também, diga-se, em seus propósitos. Mas eu nunca me ajustei. Eram planilhas demais, argumentos demais, certezas demais. Um dia fui assim descrito: "Barreto é um outsider". E era verdade. Então, para não prejudicar as certezas acadêmicas retirei-me do grupo. 


Trabalho com o imponderável, o inusitado, as pequenas coisas, o dispensável. Para mim uma formiga carregando uma folha que pesa mais de dez vezes que ela é acompanhar uma odisseia, uma travessia, uma grande aventura que chega a ser humana - pelo menos no paralelismo que estabeleço entre humanidade e a vida de uma formiga. Com vantagem para a formiga: ela não está sendo explorada porque, a rigor, aquilo não é trabalho: é vida. Todo o formigueiro comerá daquela folha. Sem pagar.


Acompanho aquela formiga com vivo interesse até que ela suma no misterioso, secreto, escuro e seguro túnel que é sua morada. Também acompanho com interesse os passos dos meus netos. Suas pequenas e inestimáveis descobertas, sua ingênua aventura de começo. Mas, devo admitir, as coisas que crio têm também sua organização caótica. O caos é a essência de todos os inícios, a desorganização em estado perfeito. A imprevisibilidade do próximo passo. É não chegar nunca e continuar querendo não chegar.


Foi assim pensando que este ano fui a Bogotá apresentar trabalho acadêmico: "A fotografia como paixão em Cartier Bresson". Está vendo? Não consegui produzir um texto científico; apresentei um ensaio apaixonado sobre a paixão do mestre da Leica. Foram mais de dez horas de avião até a capital da Colômbia: primeiro de Natal a São Paulo saindo daqui de madrugada. Ali, uma espera que dava a impressão de século. Afinal o voo que me levou à belíssima Universidade Javeriana, entidade católica. Elitíssima: meninos e meninas da mais fina flor bogotana.


Apresentei meu trabalho um dia depois da chegada. Completamente diverso dos trabalhos dos colegas: eles e elas científicos. Eu, gauche, alumbrado com as fotos de Bresson. E deu certo: fui o último a mostrar meus slides e meu texto. Mas o fiz com tanta convicção que a Mesa Diretora, ao encerrar nosso seminário, me fez um carinho de ego: "Barreto, foi o ponto alto. Seu trabalho foi uma celebração". Confesso que vivi - aqui peço esse empréstimo a Neruda -, essa ponta de vaidade.


Mas o mais importante ocorreu quando voltei. Dias depois da chegada minha neta perguntou o que eu tinha ido fazer tão longe. Expliquei. E ela indagou: “Mas, Vô, você tirou o primeiro lugar?”.

Disse que não, que não era um concurso. Apenas a gente apresentava o trabalho e “recebia um certificado, um diploma, viu?”.


Aí, ela me fez a pergunta decisiva: “Mas, Vô, você fez essa viagem tão longe só pra receber um papel?”

E eu: "????????????????????????????????????????????".







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