E foi só pra receber um pedaço de papel
(Emanoel
Barreto, setembro de 2010)
Tenho dificuldade em viver situações cerebrais; situações em que valem esquemas mentais lisos, rapados como tábua que acabou de sair da carpintaria. Tenho dificuldade em conviver com grupos que pensem de forma matemática. Prefiro a diversidade da vida ao numérico; as coisas arriscadas da escrita ao que já esteja com final antevisto; as coisas que podem se desvencilhar do estrutural e do planejado, do programado e reto e, por isso, estático de nascença. A matemática não erra nunca e isso, para mim, não tem graça.
Certa vez, isso há anos, quando ainda fazia o mestrado, participava de equipe de
pesquisa social muito rígida. Muito competente e séria também, diga-se, em seus
propósitos. Mas eu nunca me ajustei. Eram planilhas demais, argumentos demais,
certezas demais. Um dia fui assim descrito: "Barreto é um outsider".
E era verdade. Então, para não prejudicar as certezas acadêmicas retirei-me do
grupo.
Trabalho com o imponderável, o inusitado, as
pequenas coisas, o dispensável. Para mim uma formiga carregando uma folha que
pesa mais de dez vezes que ela é acompanhar uma odisseia, uma travessia, uma
grande aventura que chega a ser humana - pelo menos no paralelismo que
estabeleço entre humanidade e a vida de uma formiga. Com vantagem para a
formiga: ela não está sendo explorada porque, a rigor, aquilo não é trabalho: é
vida. Todo o formigueiro comerá daquela folha. Sem pagar.
Acompanho aquela formiga com vivo interesse até
que ela suma no misterioso, secreto, escuro e seguro túnel que é sua morada.
Também acompanho com interesse os passos dos meus netos. Suas pequenas e
inestimáveis descobertas, sua ingênua aventura de começo. Mas, devo admitir, as
coisas que crio têm também sua organização caótica. O caos é a essência de
todos os inícios, a desorganização em estado perfeito. A imprevisibilidade do
próximo passo. É não chegar nunca e continuar querendo não chegar.
Foi assim pensando que este ano fui a Bogotá
apresentar trabalho acadêmico: "A fotografia como paixão em Cartier
Bresson". Está vendo? Não consegui produzir um texto científico;
apresentei um ensaio apaixonado sobre a paixão do mestre da Leica. Foram mais
de dez horas de avião até a capital da Colômbia: primeiro de Natal a São Paulo
saindo daqui de madrugada. Ali, uma espera que dava a impressão de século.
Afinal o voo que me levou à belíssima Universidade Javeriana, entidade
católica. Elitíssima: meninos e meninas da mais fina flor bogotana.
Apresentei meu trabalho um dia depois da chegada.
Completamente diverso dos trabalhos dos colegas: eles e elas científicos. Eu,
gauche, alumbrado com as fotos de Bresson. E deu certo: fui o último a mostrar
meus slides e meu texto. Mas o fiz com tanta convicção que a Mesa Diretora, ao
encerrar nosso seminário, me fez um carinho de ego: "Barreto, foi o ponto
alto. Seu trabalho foi uma celebração". Confesso que vivi - aqui peço esse
empréstimo a Neruda -, essa ponta de vaidade.
Mas o mais importante ocorreu quando voltei. Dias
depois da chegada minha neta perguntou o que eu tinha ido fazer tão longe.
Expliquei. E ela indagou: “Mas, Vô, você tirou o primeiro lugar?”.
Disse que não, que não era um concurso. Apenas a
gente apresentava o trabalho e “recebia um certificado, um diploma, viu?”.
Aí, ela me fez a pergunta decisiva: “Mas, Vô, você
fez essa viagem tão longe só pra receber um papel?”
E eu:
"????????????????????????????????????????????".
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