sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Leia como começa o romance "Os crimes do Padre Heusz"

Pessoal, diante do crescimento das vendagens do livro "Os crimes do Padre Heusz", posto um aperitivo do trabalho. (EB)




Vamos subir quatro lances de escada e estamos num jornal.

PáginaUM
Jornal só faz rosnar; quem morde mesmo é povo

Um exemplar da edição do dia, 22 de setembro de 1959, se espalha sobre a mesa de diagramação; está meio amassado e cumpre a sina cotidiana dos jornais: virar banalidade emudecida em papel. Esse negócio de jornal é um ciclo de 24 horas. Manchete tem de renascer todo dia. Só é grito de manhã; ao meio dia está rouca; de noite já se calou. É por isso, por causa desse grito, que trabalho em jornal: para fazer acontecer como notícia o que no mundo se deu como fato. Jornalista tem que vibrar. Ou isso ou vá trabalhar num cartório.
São mais de nove da noite. A redação está quieta. Eu e um diagramador somos os únicos ainda por lá, começando a editar a primeira página. Hoje o fechamento atrasou por causa da apuração de uma matéria-bomba; assunto delicado, envolvendo figurão. Um escândalo que a alta sociedade vinha escondendo. Mas o jornal descobriu e amanhã a manchete estará na boca de todos:

Senador estupra empregada em casa bem na frente da esposa

Político arrastou brutalmente a madame para o quarto da doméstica; aos berros queria que ela visse tudo

Intimamente eu já ouvia o estampido da manchete, sua explosão no dia seguinte. O grito de tinta escancarado em tipagem corpo 72. Mas enquanto aquela voz de papel não buscava o olhar geral, a redação era silêncio. Silêncio somente quebrado pelo tec-tec-tec da minha máquina, batucando aquela manchete. Fora isso, tudo parado. As outras máquinas de escrever, como pesados caranguejos de uma pata só, estavam caladas em seus corpos de metal. O resto era o de sempre: os cestos, cheios de laudas amassadas; estirados em tiras de papel, os telegramas das agências de notícia pareciam o tapete de um desatinado; havia jornais espalhados sobre todos os birôs. O rádio, sintonizado em algum noticiário nacional, dizia que tinha acontecido não-sei-o-quê-não-sei-aonde. Cinzeiros empanturrados, garrafa de café e um maço de cigarros ao alcance da minha mão completavam o ambiente. Sempre que revivia aquela cena, ou seja, todas as noites, eu tinha a impressão de que ali tinha havido um confusão, uma luta, algum tipo de guerra ou pelo menos uma escaramuça de alucinados.

Olhando o título que acabara de bater, algo me veio à mente. Uma coisa que me desaponta em jornal: o “tratamento especial”. Isso quer dizer o seguinte: aos inimigos ou desconhecidos o peso da manchete; aos de casa “um pouco de cuidado”. O exemplo estava bem ali, na minha cara: se o senador tivera a chicotada da manchete, um vereador – amigo da Direção – recebia tratamento diferenciado. Seguinte: ele tinha puxado um bruta baseado e rebatido a coisa com uma boas doses de uísque. Depois partiu para a Câmara e lá aprontou a maior confusão. O repórter autor da matéria tinha sugerido o seguinte título:

Muito doido
Vereador arrocha um tarugo de maconha,
                  puxa fumo pesado e quebra pau no plenário

Por ordem da Direção o título ficou assim:

Vereador faz confusão
no plenário, mas é contido
por seus colegas

A chamada foi editada no canto inferior esquerdo da primeira página. O texto era fiel ao fato, contava tudo; mas, editorialmente, estava minimizado; notícia murcha dependendo de onde esteja. Todo dono de jornal sabe disso. Continuei trabalhando. Às nove e quinze trinou um telefonema pontual. Como se fosse um pequeno rito, toda noite um louco maravilhoso perpetrava pequena insanidade que muito me agradava: fazia sua ligação costumeira para “saber se tinham matado alguma autoridade”. Era incisivo.
– Mataram alguém de alto cargo? Mataram alguém? Se mataram, me adiante.
– Não, não. Hoje não mataram nenhuma autoridade.
– Graças a Deus. É muito bom quando não matam uma autoridade, sabia? É sempre bom, não é? Não é?
– Sim, sim, é sempre bom quando não matam uma autoridade.
– Muito obrigado.
– De nada.
Ele desligava; mas, antes, me tranquilizava: amanhã, no mesmo horário, voltaria para saber se tinham matado uma autoridade: “Preciso estar informado a respeito dos acontecimentos graves”. “Muito obrigado”, eu dizia. Isso já acontecia há anos. E reforçava em mim uma convicção: todo jornal é um ambiente de fragores. Ou pelo menos eram. Aquele dia, aquele dia mesmo, tinha sido marcado por uma peleja ou algo que o valha. Veja só: exatamente às seis da tarde um sujeito enlouquecido de medo tinha invadido a redação. Fugia para escapar de pequena multidão que queria matá-lo. Um segurança impediu o linchamento repelindo a golpes de cassetete os atacantes irados. Depois, quando os agressores se dispersaram, o homem contou a sua história: tinha se envolvido numa briga de família. Tinha discutido com o pai e havia surrado duramente o velho. Indignados, os vizinhos se meteram e o tempo ferveu. Ele levou chutes e socos, apanhou muito. O alarido se alastrou e logo toda a rua se reuniu para malhar aquele judas aos gritos de “mata! mata!” Ele conseguiu fugir, mas trouxe a malta furiosa em seu encalço. Ao passar em frente ao jornal teve a insensata ideia de socorrer-se da redação. “É que jornal sempre defende quem está em desvantagem, não é? E como eu estava apanhando, quer dizer, estava em desvantagem, vim me esconder aqui”, justificou-me depois da confusão[1]. Expliquei que as coisas não funcionam bem assim: jornal não se mete em briga de família: escancara as brigas de família. É bem diferente, salientei. E lhe disse:

– Quando o senhor brigar de novo, uma boa delegacia vai ser a melhor solução. Corra para a delegacia mais próxima. Vai ser preso por desordem, vai dormir no chão, mas vai escapar. Já aqui, se aqueles homens quisessem podiam ter invadido.


[1] Nota do autor: a referência diz respeito a fato ocorrido na Tribuna do Norte, Natal, em 1980, início de noite de mês que não lembro, quando um homem era acossado por multidão enfurecida. Morava no bairro das Rocas, perto da Ribeira, onde fica a Tribuna. Havia surrado o pai e fora perseguido até o jornal. Passada a confusão, ocorrida exatamente como narrado, explicou da seguinte maneira sua atitude: “O jornal é de Aluízio Alves” – jornalista, ex-governador e ex-ministro, líder populista, fundador da TN. “E como Aluízio é o protetor do povo vim direto para cá: para Aluízio me proteger.”
 

Nenhum comentário: