quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Entrevista feita por mim com a ajuda do Professor Deífilo Gurgel, em 1975

"Vou entrando neste ornó"


O que é isso, Sr. Sarnoff?
Que bruxaria é essa?”
(Assis Chateaubriand vendo, nos EUA, experiências de TV em cores, anos 50)

Uma velha empregada dos meus idos de menino costumava me cantar uma canção folclórica, com os seguintes e estranhos versos:

Vou entrando neste ornó
Não venho fazer mal
 

Venho arregatar a meu filho
Que está preso neste ornó...
 

Meu filho é moura, 'stá batizado
Já 'stá na lei da cristiandade... (bis)

E repetia aquela esquisita música: que o filho do personagem era “moura”, “estava batizado” e, santamente, “na lei da cristiandade”. O que queriam dizer aqueles versos? Qual seu sentido? A poética, eminentemente despojada, escovada de qualquer enfeite estético convencional, sequer tinha rimas. Mas, se eu conseguisse cifrar musicalmente essa letra e você soubesse ler pauta musical, veria como havia força, raiz, virtuose telúrica naquela exótica composição. Uma cantilena, uma oração. 

Pois bem, jamais esqueci aquela música, apesar de sequer imaginar qual o seu verdadeiro sentido.

Mas, veja só como são as coisas: certa feita fui, na companhia do folclorista Deífilo Gurgel a um bairro popular, na periferia, para entrevistar Zé Relampo, artista genial que, se vivo ainda for, dá espetáculos maravilhosos com bonecos de joão-redondo. Era o ano de 1975. A entrevista era para o Módulo III, um caderno especial, dominical, que então o Poti, edição dominical do Diário de Natal, publicava.

Antes de chegarmos à casa de Relampo, me vem à memória a velha canção folclórica, coisa do Amazonas ou arredores e vi que ali poderia estar a solução: Deífilo, como estudioso do assunto, poderia ser o decifrador daquele antigo  mistério de um menino que, agora jornalista, já pouco acreditava em lendas e dava passos rápidos para duvidar de tudo.

Cantei a Deífilo a canção - que ele jamais tinha ouvido - ele a achou interessante e, num minuto - para você ver o que é tratar de um assunto com um especialista - ele decifrou o mistério.

Explicou: aquilo era um romance, um tipo de literatura oral. E mais: “ornó”, era uma corruptela de “nau”, as naus portuguesas, que cruzavam os mares, dominando o mundo. “Arregatar”, nada mais era do que “resgatar”, salvar, livrar quem estivesse preso. E “moura”, era nada mais nada menos que “mouro”, o árabe, o infiel, que dominava a Terra Santa.


Daí, o motivo da composição: se o filho do cantor era “moura, mas já estava batizado”, não, realmente não, jamais poderia ficar preso no “ornó”, uma vez que já estava convertido aos princípios da Igreja. Faz sentido, faz sentido... Faz sentido, mas demonstra uma relação de dominação cultural, imposição de poderio injusto. No fundo, a canção revela uma perda de identidade, em função da força vinda de fora e que nos leva sempre a um ornó que não desejamos.

Para mim, foi como um achado, uma alegria, um reencontro e um estímulo a fazer com o meu maior entusiasmo de foca a matéria com Zé Relampo. E ainda hoje, em horas vazias, às vezes quando teclo estes textos noturnamente para enviar ao Coisas de Jornal, pareço ouvir:
Vou entrando neste ornó, não venho fazer mal...


E eu, que continuo mouro, sinto-me ausente da minha própria, simples e esquecida canção vinda dos moradores do Norte. Mas espero, algum dia, ser arregatado deste ornó...

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