terça-feira, 13 de dezembro de 2011

De como eu fui preso no meio do catimbó ou o representante das almas

No ano de 1930 morava eu na Pensão Calango, na verdade Hotel Hospedaria S. Francisco das Boas Almas, mas que, dadas as suas modestas acomodações, havia recebido dos seus ocupantes aquele título, bastante elucidativo. Ali se arranchavam estudantes como eu, caixeiros-viajantes, ocasionais visitantes da cidade e, algumas vezes, indivíduos de trato furtivo, devo supor fugitivos e que tais.

Pois bem, dentre esses tipos eis que nos chega um que se apresentou como "alta autoridade em coisas místicas". Era um tipo alto, magro, branco de cabelos avermelhados e crespos. Os olhos muito pretos completavam a figura. Levemente encurvado, era de poucas palavras e recebia pessoas que iam "pedir conselhos". Quando isso acontecia ele fechava a porta do quarto a chave e se ouviam cantorias e loas numa língua estranha. Algumas vezes gritos horrendos, guinchos cortavam os ares e então silêncio total . Pouco depois o consulente saía dizendo "está bem. Agora está tudo bem."

Certa noite cheguei tarde das aulas. O quarto do tal sujeito ficava nos fundos do quintal da hospedaria e para lá me dirigi ao ouvir chorosa ladainha que aos poucos se transformou em um batecum pesado, em meio a grande falariço que virou cantar forte e rápido. Aprorimei-me da janela lateral e, pela fresta, vi a seguinte cena: o tipo estava entonado numa capa preta que lhe chegava aos pés e tinha acendido uma fogueira no meio do quarto. A seu redor uma ciranda de mulheres dançava um samba de doido.
Ao fundo sentava-se um homem que gritava: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?" 

E aquele círculo de dementes respondia:"Ele vai chegar! Ele vai chegar!", e continuava a dança. O da capa preta dava voltas rápidas e fortes fazendo o manto abrir-se, o que lhe dava poderosa aparência de taumaturgo do além.Continuemos: para melhor ver a cena, subi ao telhado do quarto, fastei umas telhas e de lá continuei a acompanhar o amalucado espetáculo. 

Para completar, um amigo meu, colega de hospedaria, também fora atraído por aquela loucura, e ao ver-me encarapitado correu para perto de mim e ficou a meu lado. Perguntou: "O que diabo é isso?, e eu espondi: "Só Deus sabe o que diabo é isso. É negócio de doido."

Nesse instante o homem, lá embaixo, insistiu: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?", ao que turma toda respondia: "Sim! Ele vai chegar!, e o homem retornava: "E vai trazer o dinheiro? Vai trazer o dinheiro?!"
E todos, no mesmo tom, garantiam: "Vai trazer o dinheiro!"

Aí, aconteceu outra loucura: as mulheres se apoderaram de latas cheias de água e jogavam no sujeito, dizendo: "Toma este banho de salvação! Fica limpo que a fortuna vem!". Encharcado, o pobre começou a dar saltos enormes e se dizia forte e poderoso e berrava: "Agora que ele chegue e traga o meu dinheiro! Estas santas orações vão me fazer ficar rico!"

Então o mestre daquela cantilena apoderou-se de uma chibata e passou a surrar o infeliz que gritou: "O que diabo é isso? Pelo amor de Deus, o que diabo é isso?", enquanto a chibata ligeira o açoitava. O mestre respondeu que aquilo era a "limpeza" da alma. "A surra divina retira o pecado!" e lepo no lombo do coitado, que se desesperava: "Ele vai chegar? Ele vai chegar? Quero que chegue com o meu dinheiro!"

Nesse momento meu amigo se mexeu. Foi o suficiente: as telhas se deslocaram, um caibro cedeu, outro também, um terceiro escorregou e o telhado veio abaixo. Caímos bem no meio da bagaceira. O feiticeiro gritou: "Pronto! Ele chegou e veio logo dois. Veio logo dois, tá vendo?!" Diante disso o homem surrado não se fez de rogado e atirou-se ao meu pescoço perguntando "onde estava o dinheiro". Queria saber se eu "era o representante das almas" e como iria ajudá-lo a sair da falência de sua bodega.

De nada adiantava negar. O homem continuava sua inquirição e partia para cima de mim e do meu amigo. O mestre gargalhava alto e sua ciranda de mulheres loucas dançava sem parar. Nessa luta, a fogueira cresceu e tomou conta do quarto. Todo o Hotel Hospedaria S. Francisco já estava desperto e correu para ver aquela cena de alucinados.  O corre-corre e o falariço tomavam conta de tudo. As chamas se espalhavam e assumiam proporções enormes e o homem lá: "Você é o representante? Se é o representante, onde está o dinheiro?" Cadê o dinheiro que Deus mandou, fila da puta?"

O dono da pensão e os moradores, vendo isso, partiram para cima de mim, do meu amigo e dos desmiolados, gritando: "Bando de catimbozeiros! Bando de catimbozeiros! Arreia o pau no lombo deles! Arreia o pau!" 

E o pau cantou. Uma velhinha, empunhando uma cruz e uma enorme vela, como se já não bastasse tanto fogo, cantava:

"Queremos Deus, homens ingratos
"Ao Pai supremo, ao redentor
"Zombam da fé os insensatos
"Erguem-se em vão contra o Senhor
"Dá nossa fé, oh! Virgem, o brado abençoai
"Queremos Deus que é nosso Rei
"Queremos Deus que é nosso Pai"

Para atiçar ainda mais a assembléia de dementes aconteceu o seguinte: nas imediações morava um padre que sofria de insônia. Quando ouviu toda aquela lamúria, cantilenas, loas e proclamas alucinados, veio ver o que era. Percebendo que o louco se atirava ao meu pescoço correu para me ajudar, gritando: "Em nome de Deus para com isso!" E dizia: "Irmãos, vamos rezar em outro credo. Abaixo o catimbó!" Mas deu tudo errado. As pessoas pensaram que o padre fazia parte do magote e meteram-lhe: "O pade está chamando Deus para perto do Cão!", urravam. No meio da confusão o mestre de todo aquele pandemônio se evadiu, bradando: "Taí! Isso é a paga por terem prejudicado os trabalhos!" E sumiu.

Para encerrar: o comerciante foi dominado e eu posto a ferros. O padre também foi preso. Meu amigo conseguiu escapulir. Logo depois a polícia chegava e fomos parar na delegacia.  Lá, o delegado, já quase umas duas horas da manhã, virou-se para mim e disse:"Bota todo mundo no xilindró. Especialmente esses dois: o padre, que é padre catimbozeiro e esse aí, que é o secretário do Cão".

O "esse aí" era eu, e somente então fui perceber: no meio da desordem a capa preta tinha ficado presa ao meu pesçoco e eu estava vestido de secretário do Cão: dos pés à cabeça. Passei bem uns dez dias preso, só comendo pão e água, até que um tio meu foi me soltar. Quando me viu em estado tão lamentável, disse: "Que vergonha, meu filho, que vergonha para a família. Além da cachaça, agora deu pra catimbó..."

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