domingo, 25 de setembro de 2011


A necessidade do corpo

O corpo sempre foi nosso artefato de vida, objeto de estranhamento e parte de nós. Numa definição de dicionário o substantivo corpo é "coisa material que pode ser percebida pelos sentidos". O Homem, assim, percebe o corpo e nele existe, sendo essa materialidade condição insolúvel dessa vida. É o corpo ou nada.

Existimos com o corpo, parceiro  dessa condição primeira. O homem se percebe dentro do corpo e o corpo é ele. Corpo: o homem mesmo e para o homem ao mesmo tempo. Dividido e indivisível.  

Sujeito e objeto de si, o homem sofre pelo corpo que tem, quando não o aceita como este é e está; ou então se alegra quando o corpo sucumbe aos desígnios da moda, essa efêmera estética de costumes desenhados na prancheta do estilista. Da mesma forma brinda quando o corpo é levado à mesa de corte da cirurgia vaidosa.

Mas quando há doença, esta não escolhe a beleza ou o seu contrário, e então o corpo torna-se o adversário e porto que temos a nosso dispor, ameaça sem fuga possível. Enfrentar isso é também condição da qual não se escapa. Não há como.

Leia a matéria abaixo. Ela é o motivo desse texto.

Por Cristiane Ramalho


Por Pedro Diniz


A alemã Uta Melle decidiu virar musa de ensaios sensuais depois que retirou os dois seios, vítima de um câncer


Poucos dias antes de completar 40 anos, a alemã Uta Melle ganhou um presente de grego. Soube que teria de extirpar os dois seios, por conta de um câncer de mama. Logo veio a dúvida: "Será que vou deixar de ser sexy?". Teve certeza que não ao consultar o marido, um publicitário bem-sucedido que a presenteou com um quadro de uma guerreira amazona que cortara o próprio peito para usar melhor o arco e a flecha. Animada com o desenho, Uta partiu para um projeto singular: fotografar mulheres com histórias semelhantes. 

O trabalho rendeu um livro de arte e a exposição fotográfica "Amazonas". São mulheres nuas, e a ideia é incomodar. A exposição já percorreu três cidades alemãs e pode ser vista até meados de outubro em Viena. Nas fotos, 19 mulheres, entre 30 e muitos e 50 e poucos anos, estão nuas ou seminuas. Muitas, em poses sensuais. Em comum, os sinais da batalha contra a doença: algumas têm um único seio, outras próteses, outras apenas cicatrizes no colo. Como Uta. Publicitária que deixou o mercado, a alemã virou uma espécie de ativista da causa, lutando contra o preconceito e a favor de mais verbas para pesquisa. 

"Aqui, a doença ainda é um tabu. Os alemães não suportam ver cicatrizes nem mutilações. Acham que é sinal de derrota. Trauma de duas guerras mundiais", diz Uta. Ela não conseguiu patrocínio, mas ganhou espaço para a mostra: o Stilwerk, templo de lojas de design. Em Berlim, mais de mil pessoas visitaram a exposição em duas semanas. Mas houve quem não gostasse. Dois homens fizeram questão de ver tudo, só para detonar o projeto para ela. "Eram idiotas. A verdade é que muita gente não quer se confrontar com seu próprio medo", dispara a alemã. O jornal de esquerda "Junge Welt" publicou um artigo dizendo que o livro não fazia uma abordagem séria do assunto. Já o tabloide "Bild", que vende milhões de exemplares por dia e costuma ostentar fotos de mulheres nuas e opulentas na capa, reagiu com simpatia, embora alguns leitores tenham feito comentários pouco gentis.

ANJO TATUADO

No ensaio para a revista "Stern", feito logo depois da cirurgia, Uta aparece vestida de Madonna, de David Bowie e de anjo. Um querubim só com asas, cicatrizes, uma tatuagem na barriga e nada mais. "Um rapaz viu minhas fotos e disse que as achava eróticas. Mas que se sentia um perverso por isso", diverte-se. Com sua beleza andrógina, as fotos bombaram na internet. E ajudaram Uta a recrutar as 18 mulheres para o ensaio fotográfico das amazonas, feito num estúdio em Berlim. O ensaio é clicado por duas fotógrafas alemãs, Esther Haase, profissional com vários trabalhos internacionais, e Jackie Hardt, ex-modelo que passou para o lado de trás das lentes. Nele, as mulheres aparecem vestidas de guerreiras ou em cenas de protestos, com cartazes na rua. Toda essa pose de poder tem um fundo de melancolia.

"É um tema muito delicado, que mistura o medo da morte ao da perda da feminilidade", diz Uta. Ao saber do diagnóstico, suas filhas, hoje com oito e 11 anos, ficaram dois dias sem lhe dirigir a palavra. "Fiquei mal, mas entendi que elas precisavam de um tempo", diz a Uta mãe. Na mesma época, ela resolveu postar no Facebook uma espécie de diário do tratamento, com detalhes da quimioterapia e da operação. Foram mais de 300 fotos, com pequenos comentários. Houve quem aplaudisse. Mas alguns amigos ficaram chocados. Era mais informação do que eles precisavam. Para a alemã, compartilhar seus problemas é como exorcizar demônios. Aos 14 anos, quando descobriu que tinha epilepsia, reuniu amigos na escola e contou o que eles deveriam fazer para ajudá-la em caso de emergência. "Isso me ajudou a evitar o assédio moral. Se é para apontar meus pontos fracos, que seja eu mesma."

NUA NOS LAGOS

Como muitos alemães, ela sempre tomou banho de Sol e mergulhou nua nos lagos. Depois da cirurgia, não mudou o velho hábito. As pessoas reparam, mas Uta não abre mão de se bronzear nua. "As crianças são sempre mais fáceis de lidar. Elas perguntam, eu explico. Mas os adultos reagem de um modo estranho, muitos fingem não ver." Quando ela entra para fazer ginástica, tem gente que disfarça e sai da academia. Apaixonada por esporte, Uta não entende o culto ao corpo. Nem o pudor das brasileiras. Ao visitar as praias do Rio, há uns quatro anos , ficou surpresa com o uso da parte de cima do biquíni. 

"A gente sempre imagina a nudez como algo natural no Brasil. Mas as mulheres aí não mostram o peito", diverte-se, entre um gole e outro do expresso no Café Kollberg, em Prenzlauer Berg, bairro badalado de Berlim onde mora. Sem maquiagem, sorridente, simpática, ela fala sem parar. Mas uma certa palidez na pele denuncia que sua recuperação ainda está em curso. Vestida com uma calça de couro preta e uma blusa de gola rulê colada ao corpo, Uta conta que, no início do tratamento, jogou metade do guarda-roupa fora. Especialmente, os vestidos decotados e as blusinhas marcadas no busto. "Fiquei um tempão procurando meu novo estilo." 

Encontrou. Hoje, compra as peças que usa na seção infantil de grandes magazines. Uta ainda sente saudade dos seios. Mas já resolveu: não vai colocar prótese de jeito algum. Está convencida: ainda pode ser sexy. Ela hoje acha que também pode fazer piada do infurtúnio: "Pelo menos, meus peitos não podem mais cair". Texto anterior: (Da Folha, na Serafina - íntegra)

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