sexta-feira, 2 de julho de 2010


O DIÁRIO DE BICALHO
Honorável Diário,

Ontem aprendi grandes coisas. Grandes coisas, entende? Tudo isso por haver encontrado um grande homem, amigo velho de tempos de antanho. Os tempos de antanho foram os melhores, pelo que sei.

Pois bem, ao entrar no elevador a fim de dirigir-me ao meu escritório no 37º  andar, encontro a grande figura humana de Quaresma. Quaresma, já pensou? Só nome já mostra quem ele é. Deve fazer jejum e grandes penitências. E disse-me coisas, coisas alvissareiras: agora, anda com os bolsos da calça e do paletó cheios de velas.

"Para quê?", perguntei. "Pagar promessas", disse, com um certo ar solene.

"Promessas?". "Sim, promessas. Sempre que estou em perigo faço logo uma promessa e acendo uma vela".

Vi que ali estava pessoa em quem poderia confiar. Homem muito rezador, ciente de altas ciências.

Ele ia para o mesmo andar que eu. Lá tenho meu escritório e ele o dele. E lá nos fomos, metidos naquele perigosíssimo elevador. Eu contador, ele advogado. De repente, o claustrofóbico meio de transporte começou a ranger e a tremer.

Quaresma, mais que depressa, ávido, melhor diria desesperado e ingente, meteu a mão no bolso interno do paletó e sacou uma vela. "Promessa?, chegou a hora de uma promessa?", quis saber, já em pânico.

"Sim", respondeu, "estamos em sério perigo". Não duvidei: um homem que anda cheio de velas e ainda por cima faz promessas a qualquer instante deve ser levado em consideração.

"E o que devo fazer: devo me ajoelhar, pedir, rezar, implorar?". Em resposta, deu-me sábio e ponderado conselho: "Sim, ajoelhe-se, mas, em vez de rezar, comece a gritar. Gritar por socorro." 

 Imediatamente atirei-me ao assoalho do elevador e gritei o mais alto que podia. "Pelo amor de Deus, socorro! Qualquer um, socorro!" O elevador, aquela assustadora máquina certamente criada para aterrorizar pessoas de pouca fé como eu, agora além de ranger e tremer batia de um lado para o outro naquele túnel maluco por onde trafega.

Aqui pra nós, às vezes penso que elevadores podem endoidecer e nos levar para as entranhas da Terra ou nos atirar ao espaço onde nos perderemos para sempre.

Mas, Quaresma rezava aquelas rezas bem baixinho, rezas de velhinhas quando estão na igreja. Devem ser as mais fortes, porque ninguém entende nada. E o que não se entende é porque é coisa de sumíssima importância. E ficou aquela cena: ele mastigando palavrinhas e eu berrando.

De repente, ele também começou a gritar. Aí eu passei do pânico à loucura total. Se um homem de velas, rezas e promessas está gritando, boa coisa não vai acontecer. O elevador, nesse momento, já pulava feito um doido.

Veio o pior, então. Ele prescreceu: "Acenda já alguma coisa, que a vela está ficando fraca. Vamos ver se outro fogo ajuda."

Eu retruquei: "Mas a vela ainda está no começo e a chama está forte."
"Engano seu. Essas velas de hoje são falsificadas. Descarregam depressa. Não viu que ando com muitas?"

"Acenda outra", eu disse.

"Não vale. O penitente não pode acender duas velas para uma mesma promessa. Outro fiel tem de ajudar."

Eu tinha uma caixa de fósforos. Acendi um, mas o fósforo também devia ser falsificado, porque logo se apagou. Eu tinha comprado fósforos com a carga vencida. Não se pode mais confiar em fósforos hoje em dia. Em desespero abri a caixa e toquei fogo em todos os fósforos ao mesmo tempo.

Houve uma pequena explosão e o elevador foi inundado de fumaça. Então, água começou a entrar no elevador. Uma verdadeira inundação. Os fósforos tinham disparado o sistema automático de combate a incêndio e todo o edifício estava sendo inundado.

Afinal o elevador parou no 37º andar. Quando saímos, molhados e dando graças por haver escapado, fomos presos. Acusados de incendiários. Mas, graças a Deus o delegado era um homem bom. Compreendeu nosso fervor e nossa fé e nos liberou.

Antes de sairmos, após tão rápida prisão, entendi o motivo. O delegado, que tinha medo de bandidos, também andava com um monte de velas nos bolsos.



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