quarta-feira, 7 de julho de 2010


 O DIÁRIO DE BICALHO
Amável Diário,

Descobri hoje de manhã que sou um homem sem sombra. Minha sombra fugiu de mim, entende? Ao fazer a caminhada diária notei algo estranho: era a ausência da sombra. Como sei que fisicamente sou um corpo opaco e que todo corpo opaco submetido à luz produz aquilo a que chamamos de sombra, tomei-me de cuidados.

Um amigo já me havia falado nisso, garantindo que sua sombra havia fugido. Para ele, a explicação era que a tal sombra era preguiçosa e não gostava das ferozes caminhadas que ele faz todos os dias.

Considerei aquilo algo natural: afinal, as sombras, como qualquer ser vivente, têm o direito de se recusar a trabalhos forçados. Mas, no meu caso não. A minha sombra, e isso ela já havia demonstrado em seguidas discussões comigo, queria me assassinar. Para tanto, havia fugido a fim de preparar seus planos.

Convicto do perigo, acautelei-me. Olhando para todos os lados percebi movimentos escusos: era a sombra Amigo Diário. Movia-se com velocidade incrível. Saltava sobre árvores, carros, corria pela pista onde eu fazia a caminhada. Chegava até às nuvens, vertiginosa e cruel.

Então, após dar um salto de mais de dez metros de altura, precipitou-se sobre mim e parecia brandir agudo e pavoroso punhal.

Rápido como meu lúdico, quero dizer lúcido pensamento, atirei-me sob a copa de uma árvore e escapei ao atroz e belicoso golpe. A arma ficou cravada no tronco e, enquanto ela tentava recuperá-la, fugi.

Entrei no meu carro e acelerei em direção à minha casa. Inútil, a sombra corria ao lado e sorria. Enfrentando o trânsito, que apesar da hora já era intenso, cheguei. Chovia. Somente então percebi que, todo esse tempo, eu estava sob um temporal. Desde quando caminhava.

Mas, chegando à minha casa, divisei a figura macabra da minha sogra à porta. Parecia me esperar, a fim de, ali mesmo, me eliminar friamente. Tinha à mão um estranho objeto negro. Mais perto percebi que era um guarda-chuva. Sem dúvida se preparava para cravá-lo em meu coração. Dizem que sogras são exímias no uso de guarda-chuvas como armas.

No carro também havia um guarda-chuva. Empunhei-o e preparei-me para o combate mortal. Avancei em riste, prestes ao embate. Se morresse, teria fim glorioso, combatendo aquele sinistro dragão.

Ele me disse: "Meu filho, você nessa chuva toda...", querendo me enganar. Notei que preprarava-se para desfechar-me notável golpe no crânio e assumi posição de defesa. Minha mulher veio em socorro da virago e dizia também: "Querido, você, todo molhado, vai se resfriar..." e percebi que tinha nas mãos uma toalha, certamente para me enforcar.

Nisso, uma réstia de sol me iluminou e vi novamente a minha sombra. A chuva tinha cessado, o sol brilhava e ela tinha voltado. Entrei em casa desesperado, mas agora com a minha sombra que, em caso de urgência, poderia me ajudar no combate.

Ensopado, dei o primeiro espirro. Minha mulher chegou com um chazinho e me disse: "Beba isso, amor, vai melhorar."

Bebi, mas, por precaução, para não ser envenenado, cuspi tudo. Agora estou aqui, gripado. Minha mulher, ao meu lado, diz que está cuidando de mim. Acredito não. Quando eu dormir tenho certeza de que serei assassinado.

Deste seu amigo,
Bicalho

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