sábado, 17 de abril de 2010


A caravana que foi para Damasco
Emanoel Barreto

Ora, naquele tempo seguia eu em modorrenta caravana em direção a Damasco, e cochilava em meu camelo Yuossef, quando eis que surge, lá adiante, um oásis. Maravilha das maravilhas.
Ali chegando, havia já buliçoso ajuntamento. Misterioso grupo, trajando escuros indumentos, confabulava.

Apeei e fui em sua direção, pois queria beber água e eles estavam próximos de lá. Olhando-me à sorrelfa, os indivíduos dirigiram-me olhar enviesado. Aproximei-me, deselhei-les paz e bem e, como viram que eu não tinha intuitos malsãos, corresponderam.

Identifiquei-me como viajor e perguntei quem eram. Um disse-me: "Sou um ímpio." E fez profunda reverência."


Outro asseverou: "E eu, um réprobo. De tradicional cepa." Sorriu um sorriso mefistofélico e calou-se.
Terceiro afiançou: "Quanto a mim, néscio. Sempre a seu dispor"

Com o rosto encoberto por espesso tecido, à vista apenas os olhos, sombrio viandante anunciou-me: "Ímprobo."

Outro assim pronunciou-se: "Sou, honradamente, gentio. E sigo e respeito antigas e venerandas tradições."


Mais uma voz se fez ouvir: "Trate-me por biltre", disse, demonstrando orgulho por suas qualidades vis."

Ao meu ouvido fez-se outra voz, em seguida: "Quanto a mim, parvo, por vocação e legado paterno. E saiba que meu pai foi um grande parvo, se é que me entende.

"Somos de diversas especialidades, como vê", acentuou um escroque, que em seguida anunciou: "Toda esta grei trata de assuntos que lhes são competentes e vamos, como o senhor, a Damasco fazer fama e fortuna."

Eu disse "Epa! Não vou em busca de nenhuma das duas. Estou na companhia daquele homem, a quem chamam Marco Polo, que busca novas paragens para conhecer. Só isso." Como se nota, eu já estava preocupado por estar falando com aquele magote de trapaceiros, cujos pendores iam, da preguiça mais indolente à mais ignóbil cupidez pelo dinheiro e todos os seus prazeres.

Mesmo já assombrado com o potencial maléfico do grupo e já pensando em chamar meu amigo Marco Polo para, literalmente, fugir daquele bando, tomei coragem e indaguei: "Se me permitem, como pretendem acumular grandes cabedais em Damasco?"

"Ora", respondeu um néscio, "muito simples: ali reina grande licenciosidade. Na política, na economia, nos costumes. Até nas manifestações religiosas, todos buscam dinheiro e ganham, vamos dizer assim, óbolos fabulosos em secretas transações. Assim, como detemos grandes conhecimentos e secretas ciências, largas sabenças e truques monumentais na vida pública, vamos entrar para a política. Seremos reis e faraós, sultões, xeques e grãos-vizires, imperadores e tiranetes, chefes e maiorais."

Ante tais palavras, retirei-me. Marco Polo já queria seguir viagem. Viajamos dias e dias, até chegarmos a Damasco. Lá reinava grande alarido. Logo percebemos o motivo: um grupo de homens malissímos havia dominado o Poder e proclamava uma nova lei e uma ordem: o povo fora vendido como escravo e um país distante e imperial e todos, absolutamente todos, começavam a ser desterrados.

Preocupado com aquela situação, Marco Polo perguntou-me: "Ficamos para ver mais, conhecer a vida de Damasco e a hospitalidade tão famosa do seu povo?"

Antes de entrar em pânico e saltar sobre o meu camelo, gritei: "Vamos embora, Marco! Aqui não há mais vida. A hospitalidade exauriu-se. Aqui predominam a insânia e a barbaridade, nas ruas e nas instituições."

Quase em desespero Marco acompanhou-me, mas, antes de partir, ainda ouvimos quando um biltre anunciava: "Viemos do Brasil! E viemos para ficar!"





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