quarta-feira, 24 de maio de 2006

Silêncio, ela é virgem...*

"Não há nada permanente,
exceto a mudança."
Heráclito

Natal, anos 50. Festinha no Aero Clube, com Aderaldo e seu solovox de ouro. À frente de uma pequena porém vigorosa banda, Ade encantava as tertúlias de brotos, tocando os hits das big bands e ensaiando os primeiros passos de uma nova dança, que escandalizava os papais e mamães, o rock’n’roll.

Em meio à vertigem da música, Maria Lúcia deixava-se envolver pelos acordes verbais de Anselmo, um rapaz insinuante, mas tido por todas as famílias de bem como um cafajeste. Mas Lucinha foi, foi e foi, dançando ante os olhares cobiçosos e ao mesmo tempo temerosos de suas amigas que, timidamente arrebatadas, queriam um namorado que se vestisse como James Dean.

Depois, em meio à voltagem da festa, Maria Lúcia desapareceu com Anselmo e voltou meia hora depois sozinha, lívida, pasma, transparente. O que foi, o que foi?, todas as amigas perguntavam. Ela somente respondia com uma negativa de cabeça, deixando no ar uma expectativa de medo, temor de uma coisa ruim, desastre no meio da noite. Depois, estourou na gargalhada e súbito calou-se. Acalmou-se e foi dançar com outro rapaz. Até o fim da festa.

“Você viu?”, comentou uma amiga, “Anselmo não voltou com ela. O que terá havido?” Nunca ninguém soube e ela, discretamente, retirou-se da convivência com as meninas, passando a ouvir em casa intermináveis discos de Cely Campelo. Certo dia, um jornal noticiou, letras enormes, tipos de madeira: “Morto o Dr. Sinésio. E sob o grande título, o complemento: “Famoso ginecologista degolado em pleno consultório.”

Maria Lúcia leu a notícia e manteve-se calada, em seu claustro privativo e voluntário. O pai, Dr. Samuel, comentava com a família o trágico desaparecimento do colega e ninguém entendia como um médico podia ser morto em seu consultório, sem que ninguém percebesse: “Pois é. Ele foi encontrado morto de manhã. Quer dizer que alguém, depois do atendimento, entrou lá e pá!, matou o homem!”, espantava-se o Dr. Samuel.

E as mortes se sucederam uma a uma, até chegar a cinco. A cidade estava em polvorosa, mortos cinco ginecologistas e não se tinha um suspeito, um motivo para os crimes, nada. Os médicos especialistas do setor ficaram preocupados e passaram a tomar graves cuidados. Todos mantinham nas gavetas alguma arma, qualquer coisa para se defender.

Uma tarde, tardinha, começo de noite, um deles, Dr. Anderson, um médico recém-formado, mas de grande futuro, atendia a uma jovem e linda cliente. Respeitoso, ele a examinava, mas não deixava de perceber como aquele corpo era belo, intenso e... na mão esquerda, não tinha aliança de casada. Naquele tempo aquilo era gravíssimo. Constatou a gravidez em estado inicial e, para saber algo mais a respeito da cliente, insinuou: “Parabéns, seu marido vai ficar feliz, a senhora está grávida...”

A mulher reagiu como uma mola, num bote de cascavel: “Parabéns não, mentiroso. Eu não sou casada, se não sou casada sou virgem, se sou virgem sou uma moça e uma moça não pode ter filhos. Vocês, médicos, não respeitam a virgindade. Eu já fui a muitos médidos para comprovar que não estou grávida.” E sacou um finíssimo estilete para tentar punir o difamador.

Horas depois, em casa, o Dr. Samuel recebia uma ligação da delegacia de polícia: “Dr. Samuel venha rápido. Sua filha está na cadeia. Foi ela quem matou todos aqueles médicos. O último conseguiu dominá-la.”

Ele foi até lá em companhia da mulher, Dona Arlinda, que em prantos ouviu da filha: - Fui a um bando de difamadores e todos diziam que eu estava grávida. Não sou casada e eles tinham de ficar em silêncio, em respeito à minha virgindade. Ninguém podia dizer que eu estava grávida. É proibido acusar uma moça de estar grávida.

Dia seguinte, ao ler o jornal, Anselmo riu em silêncio e acendeu mais um cigarro. E pensou: "Eu também, Lucinha. Eu também sabia que você não estava grávida. Como você poderia ficar grávida, se a gente nem tinha casado?" E logo em seguida pegou o telefone: ia ligar para Guiomar. Claro, ela também não ficaria grávida. Nem eram casados...
* Este texto é ficcional.

Um comentário:

Anônimo disse...

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