terça-feira, 23 de maio de 2006

O hamster também foi atropelado

"Muita luz é como muita
sombra: não deixa ver."
Carlos Catañeda


O jornalismo trabalha com um processo de seleção de acontecimentos que tenham saliência em relação aos demais fatos do cotidiano.
A priori, ganham destaque aqueles fatos que tenham carga de dramaticidade,criem tensão, gerem expectativa. Com isso, fundou-se a tradição da tensão jornalística, aquela circunstância comunicacional impactante, que gera no leitor a curiosidade pela leitura do texto.

Em função disso, os jornais estão cheios de notícias com poderoso efeito tensor. Isso pode ser facilmente percebido nos telejornais, especialmente porque estes trabalham com e contra o fator tempo: é preciso comprimir, em cerca de 40 minutos, uma profusão de fatos. E os "mais importantes" são, certamente, aqueles que melhor se enquadrarem no conceito de tensão jornalística.

Vivemos num mundo farto em acontecimentos de forte carga negativa. Como o jornal é parte do mundo, naturalmente reflete toda essa carga. Há poucos dias tive uma experiência, que me fez meditar a respeito dessa realidade e de como é preocupante o tipo de mensagem que o jornalismo dispõe ao público.

Foi assim: fui visitar minha neta, Eduarda, e qual não foi a minha surpresa quando a vi: estava vestida com uma saia da mãe, que lhe chegava aos pés, uma blusa e sapatos de saltos altos. Sim: e, na mão, tinha um lápis. Elogiei sua roupa, sua delicada elegância infantil e perguntei porque aquilo. Ela respondeu: - Vô, eu vou apresentar o Jornal Nacional.

Eu abri um sorriso desse tamanho e disse a ela que sim, que queria assistir ao seu jornal.
Ela disse o que ia fazer e subiu ao primeiro andar da casa onde mora. E completou: - Vô, venha comigo - claro que eu a acompanhei. Ela chegou à mesinha onde faz suas tarefas escolares, mandou-me ficar em silêncio e começou: - O cachorro pastor alemão foi atravessar a rua e foi atropelado pelo caminhão...

Parei. Imaginava que o "Jornal Nacional" de Eduarda seria aberto, digamos assim, com alguma "notícia" a respeito de alguma de suas bonecas ou bichos de pelúcia. Mas imediatamente, fui atropelado pela segunda "notícia": - O macaco foi atravessar a rua e também foi atropelado.

Minha admiração com sua figurinha graciosa cedeu lugar a um sentimento de preocupação: o que estaria havendo? Por que a escolha por fatos da vida, em vez de referências ao seu delicado e belo mundo de menina?

Para tentar suavizar o "noticiário", eu disse: - Eduarda, corte para o repórter Emanoel Barreto. Ele está no jardim zoológico e vai entrevistar um novo leão que chegou.

Ensinei como ela deveria fazer e ela: - Agora, vai falar o repórter Emanoel Barreto, diretamente do zoológico.

Eu entrei no "noticiário" e inventei uma entrevista maluca com o tal leão. Feito isso, cresceram minha surpresa e minha preocupação: - Mas Vô, leão não fala.

Ou seja: ali, no "Jornal Nacional", não valiam as regras da inocência, da ingenuidade. Prevaleciam as normas do mundo, suas dores e sofrimentos. Afinal, é isso mesmo o que os jornais veiculam: as dores do mundo. Lamentavelmente, tenho de admitir que, frente à realidade, não há como fugir: o mundo, feio e triste, jornalisticamente cifrado, também chega às crianças e havia, havia sim, chegado à minha netinha.

Tentei outra vez consertar a situação, mas não adiantou. Compreendi então como é poderosa a cadeia social a que estamos presos. Um mundo de desigualdades, de temores, incertezas, crueldades e dor. E o jornalismo reúne todos esses fios de desolação e tece a trama da tragédia, ao relatar o terror da vida.

Eu disse a Eduarda que estava bom de terminarmos aquele jornal, que queria ver com ela algum desenho ou algo assim. Ela respondeu - Tá bom, Vô: vamos brincar. Mas antes ainda tenho uma notícia.

Qual é? - indaguei.
Ela respondeu - O hamster também foi atropelado.

2 comentários:

Anônimo disse...

amigo Emanoel, adorável essa crônica. Serviu para despertar-me da letargia... criança tem esse dom maravilhoso... "são verdadeiros quando brincam..." enquanto alguns adultos preferem "brincar com as verdades". Ela deixa uma lição de vida... um beijo para ela. zilda

Anônimo disse...

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