segunda-feira, 13 de março de 2006

Prenderam o ladrão e a polícia sumiu

"Bandido é bandido;
polícia é polícia."
(Do assaltante Lúcio Flávio)

Houve, em Natal um homicídio cometido, como se diz no jargão jurídico, com “requintes de perversidade.” Um velho vigia da Galeria Olímpio, no Alecrim, fora atacado, dominado e, indefeso, morto por um rapaz louro, que logo ficou conhecido como Galego da Galeria.

Ao que me lembro, o velho, amarrado com arame, foi golpeado com um bastão ou algo assim, até a morte. A falta de detalhes deve-se ao fato de que, quando ocorreu o crime, eu ainda não estava em jornal e portanto valho-me das informações que via na imprensa e, claro, não dá para recordar com exatidão.

Pois bem, o Galego acabou fugindo e a polícia começou a perseguição. Nesse meio tempo eu comecei a trabalhar no Diário de Natal. Nessa época o Diário saía às segundas, à tarde. Assim, aos domingos nós trabalhávamos, preparando a edição do dia seguinte.
Eu chegava à redação às sete da noite e pegava o material coletado pelo repórter Pepe dos Santos. Eu reescrevia as anotações dele. “Traduzia Pepe”, como se dizia na redação, uma vez que ele trazia, em texto literalmente bruto, um emaranhado de informações que precisavam receber ordenamento.

Ele apurava muita coisa, era extremamente detalhista, mas, na hora de redigir... Pois bem, eu estava, em finais de 74, na hoje extinta editoria de polícia. Tinha coisa de uns dois meses de jornal.

Num domingo, pela manhã, fui fazer a cobertura nas delegacias. Por algum motivo Pepe estava sem condições de trabalhar. Saí na Kombi do jornal dando uma geral nas delegacias. Fatos de importância viravam notícia, coisas menores (queda-de-bebo como se dizia) iam para a coluna Ronda, transformados em notinhas de cinco ou seis linhas.

Pois bem, logo que chegamos a uma delegacia, na Ribeira, estava um sujeito à porta, um alcagüete, contando detalhes de uma perseguição: ninguém menos que o Galego da Galeria tinha sido preso. E o tipo se gabava de, mesmo sem ser policial, ter participado da caçada. Somente não alardeou ter atirado também.

“A puliça cercou o cara e mandou bala”, contava.” Era cada rajada que até fazia medo”, continuou, e disse: “ Quando a rajada cobria, ele dava cada pulo que era isso”, e levantava o braço coisa de meio metro, para mostrar como o bandido saltava, encolhendo as pernas para não ser atingido.

Ele retardava a informação mais importante, a prisão do bandido, para valorizar o seu relato e prender a atenção de alguns homens que estavam à sua volta. Eu não conhecia nenhum deles e, entre irritado e ansioso pelo desfecho da conversa comprida, perguntei: “E afinal, ele foi preso?”

Fora, fora preso, confirmou o homem. “E está aí, nessa delegacia. Pode entrar”, disse, como se fosse a maior autoridade policial do Estado. Eu não pensei duas vezes, meti o pé e fui entrando. Era o máximo. O Galego da Gelaria, o bandido mais perigoso do Estado, preso, e eu ali. Inexperiente, sem fontes na polícia, sem sequer uma identidade profissional que me garantisse, fui entrando.

Nessa época o grande repórter policial de Natal era mesmo o velho Pepe dos Santos, hoje um dinossauro e aposentado (outro dia falo mais dessa grande figura). Ele sim, tinha fontes e conhecia todo o submundo do crime.

Fui entrando, fui entrando e não é que não havia um só guarda, delegado soldado, nada, ninguém, para tomar conta do bandido? A delegacia estava completamente desguarnecida. Entrei e lá estava, numa cela, sozinho, sentado no chão, ninguém menos que o Galego.

Olhei e vi, numa parede, sustentado por dois pedaços de ferro cravados lado a lado, um grosso pedaço de pau, certamente para espancar os presos. Lembrai-vos de que nessa época ainda vivíamos a ditadura militar e direitos humanos eram o mesmo que nada.

O criminoso contou como havia fugido, como havia resistido à prisão, como fizera de tudo para não ser preso.

Aí, quando eu falava com o Galego... Bom, nesse momento, imagine só, entra o investigador relapso, aquele que havia deixado a cadeia sem guarda. Ele entrou e foi logo dizendo “Ei! Que negócio é esse?”

Parei. Pensei: “E agora?”

Agora? Agora era enfrentar o homem.
Ato contínuo, respondi: “Nada, não é nada, estou só falando com o Galego.”
E ele: “Pode não.”
E arremeteu: “E daqui não sai ninguém. Não sai nem o senhor e nem esse seu papel na mão”, referia-se às minhas anotações. As coisas tinham se complicado como eu jamais havia suposto.

O policial caminhou decidido em direção a mim. Eu estava sentado no chão, cara a cara com o bandido. Levantei-me dei espaço ao policial, que seguiu como quem fosse direto para a cela. Recuei, de forma a que ele ficasse de costas para as grades do xadrez.

Foi aí onde ele errou. Ele aceitou meu jogo e ficou de costas para o Galego, cruzei as mãos às costas protegendo o papel e fui saindo, pé ante pé, passo a passo, caminhando de costas, os olhos fixos no investigador. O homem, nunca compreendi porquê, parou e ficou olhando minha escapada, até que cheguei à porta da delegacia e ao sol do domingo. Respirei fundo e corri para a Kombi. Eu tinha uma grande notícia e o policial burro amargava uma derrota íntima frente a um foca sem fontes.


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