Transcrevo aqui uma colaboração de Edgar Manso, que gosta e conhece as coisas e os tipos do sertão. Eis aqui mais um causo do Edgar.
Em todo canto que a gente anda, nos deparamos com pessoas que despertam a nossa atenção, por um motivo qualquer. Eu, particularmente, gosto muito de observar as figuras típicas do nosso interior nordestino. Dizem que o matuto nordestino é ingênuo. De certa forma isso é verdade, se considerarmos a forma como eles se deixam enganar por políticos adoradores da seca, que manejam esse fenômeno milenar da natureza aumentando sempre seus currais com fins eleitoreiros.
Ao mesmo tempo, o matuto nordestino é dono de uma vivacidade e velocidade de raciocínio as vezes espantosa, sem falar no bom humor quase que permanente. E quando o bicho é valente? Aí, lasca. Hoje, me lembrei de uma figura interessante nas minhas andanças pelos interiores desse nosso Nordeste, Carlos, mais conhecido como "Bigodão", aliás essa parte de seu corpo era um verdadeiro adorno, e ai de quem mangasse do dito cujo.
Carlos é crioulo do brejo paraibano, mais precisamente da cidade de Areia, importante berço cultural, produtora de cachaças da mais alta qualidade, inclusive abriga o museu da cachaça: lá também encontramos Areia do Bruxaxá, as ruínas da Usina Santa Maria, a cahaça Volúpia, o Bregareia, d Foliarte e muito mais... Mas nesse caso aqui, Areia de Bigodão.
Conheci Bigodão na cidade de Passa e Fica, eu como estágiário em uma fazenda de produção leiteira e ele como uma espécie de vigia ou chefe de segurança. O cabra impunha respeito logo à primeira vista, era "forte", no interior quem tem um bucho um pouco proeminente é logo "forte", possuía um bigode digno de um general, e além de tudo isso ele andava com um 38 meio graúdo na cintura, esse penduricalho parecia que fazia parte do seu corpo, não se desgrudavam nem um só minuto. Apesar apesar dessa força ele era uma pessoa ágil pois montava bem e até chegava a dar umas quedas nuns garrotes em dias de pega de boi no mato.
Pois bem, Bigodão passou pouco tempo nessa fazenda, mas mesmo assim praticou feitos que merecem ser contados por aí. Bigodão era muito misterioso, parecia que tinha saído de um filme de faroeste americano. Foi contratado para fazer a segurança da fazenda, não trouxe mulher nem filhos, aliás é logo aí onde começa o mistério. Bigodão sempre mostrou a todos da fazenda um revólver novinho que ele guardava numa caixa, enrolado numa flanela vermelha e uma bala e todo dia ele limpava esse trabuco.
O que todos sabiam e ele confirmava, é que esse aparato estava guardado para ser usado contra um homem que havia matado o seu único filho com pauladas num bar, apenas por causa de um esbarrão da criança. Quando essa conversa se espalhou na região, Bigodão ficou logo respeitado, e fora isso, o cabra tinha uma mira espantosa com todo tipo de arma. Cachorro e gato nessa fazenda era mais difícil de ver do que orelha de freira, Bigodão acabava com tudo.
Apesar dessa fama os funcionários da fazenda gostavam muito dele e eu também, porque além de estarmos protegidos da violência que vem aumentando assustadoramente no meio rural potiguar, ele era uma pessoa muito tranquila, divertida e muito trabalhador. Até hoje eu acho que Bigodão não dormia, passava o dia todo montado num cavalo vigiando os cercados e a noite toda vigiando a casa e as instalações, o homem andava pelas sombras, quase invisível.
Foi aí que veio a primeira presepada de Bigodão, e logo comigo. Houve uma época em que uns fugitivos de uma cadeia da Paraíba estavam praticando roubos e até assassinatos na região próxima a fazenda onde eu e Bigodão trabalhávamos. Numa noite de sábado teve um jantar na casa do prefeito e eu fui convidado. Muita comida, muita bebida, um ótimo papo, e o tempo se passando, lá pras três e meia da madrugada eu resolvo voltar para a fazenda que fica a seis quilômetros da cidade.
Seis quilômetros para quem está de carro não é nada, mas para está num fusca 77, com farol queimado e carburador entupido, rende que só a bixiga. Ao chegar à fazenda, morrendo de medo, parei o fusca na garagem e olhei bem para todos os lados: como não vi ninguém, desci um pouco aliviado mas ainda com medo. De repente, do meio da escuridão uma mão bate no meu ombro... não caguei porque não tinha nada pronto, se tivesse era ali mesmo. Quando me viro estava Bigodão rindo, com um revólver na cintura, uma espingarda na mão e uma faca na cinta, a faca nem faz diferença porque quase todo trabalhador rural gosta muito de uma amiguinha dessas na cinta.
Ainda trêmulo do susto eu abri a porta da cozinha e chamei Bigodão para tomar um cafezinho, era um homem muito respeitador, não quis entrar de jeito nenhum mas aceitou beber o café do lado de fora, perguntei de onde ele vinha para estar ali na garagem numa hora daquelas, foi aí minha grande surpresa. Bigodão, homem temido, melhor mira da região, movido por uma vingança... fez cara de choro!
- Que foi Carlos? -perguntei.
-Seu Adigá, eu vou mimbora, num tô mais agüentando isso.
Eu pensei que ele tinha matado alguém ou estava sendo perseguido e insisti na pergunta. Ele me contou que pouco antes da minha chegada tinha atirado e matado uma gata, pegado o corpo do animal e jogado num fogo onde ele queimava o lixo todas as noites, ao voltar para casa escutara miados e ruídos atrás de umas telhas num canto de parede, ao afastá-las viu cinco gatinhos recém-nascidos, e agora, órfãos.
Isso tinha dilacerado seu coração. Fiquei sem reação quando vi aquela figura de homem sem coração se martirizando por causa de gatinhos, tentei disfarçar e já bastante curioso perguntei qual fora a sua atitude quando viu aquilo. Sabem o que ele me disse?
- Seu Adigá... eu num pudia dexá aqueles bixim sem mãe. Peguei tudim num saco e joguei no fogo pra eles morrer tudo junto. Pelu menos num fica ninguém sofrendo.Fiquei estupefato. O que dizer? A única coisa que veio na minha cabeça foi:
- É Carlos. Você é um homem bom. Depois dessa noite, passei a ver Bigodão de uma forma diferente. Bem diferente.
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