segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Uma esmolinha pelo amor de Deus...

O jornalista trabalha em contato direto com a vida, seus descaminhos, encantos, desencantos, tramas, grandezas e abismos. Assim, muitas vezes pode acontecer o que nas redações é chamado de "jornalismo participativo", ou seja, o repórter encarna uma espécie de personagem e vai, assim transmutado, experienciar, por exemplo, como vive o pedinte, alguém que está numa fila do INSS, o sofredor que é massacrado numa fila do SUS.

Li no Estadão online que uma repórter vivenciou o papel de uma mendiga esmolou durante cerca de três horas, num movimentado ponto de cruzamento de duas avenidas em São Paulo.

Somente que há um problema: cabe ao jornalista que se apresenta para tal empreitada talento para redigir, qualidade de texto, capacidade de efetivamente incorporar o personagem e passar, via texto, as perplexidades, emoções, vilezas, truques e grandezas do ser humano, do tipo humano que representou.

E isso faltou à jornalista do Estadão. O trabalho poderia ter resultado numa bela crônica, numa dolorida visão daquele mundo paralelo. Mas, não. O jornalismo vem cultivando com grande afinco, nos últimos dez anos especialmente, o refinamento da burocracia do texto, vale dizer: a exacerbação da mediocridade, o relato seco e bruto, despido de criatividade e empatia maior, que não seja o da informação pura e simples.

Até como relato a matéria é pobre, de tão curta que é. Os jornais se arrogam o direito de pensar o que o leitor deseja e fazem reformas gráfico-editoriais, expulsando de suas páginas textos elegantes, refinados, capazes de informar e cumprir com uma das funções da linguagem, que é manifestar-se segundo uma estética.

É claro que jornalismo não é poema, nem poderia ser, uma vez que trata de contar a vida cotidiana. Mas isso poderia, em determinados tipos de assuntos, ser tratado com maior rigor. Ganha o leitor em informação num texto de qualidade e profundidade e ganha o jornalismo ao cumprir com sua proposta de acompanhar o homem em sua louca e desequilibradamente bela aventura de estar vivo.

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