sábado, 24 de junho de 2006

A história de Arrius, o Velho

"A verdade é filha do tempo, não da autoridade."
Francis Bacon

As mãos se estenderam para o teclado do piano como galhos que crescem em direção ao sol. Ao toque suave as teclas respondiam com notas sequenciais que se uniam em acordes, que se seguiam em melodia, que se apresentava como esplendor na relva. Olhos semicerrados ele acompanhava a prórpria interpretação de Sonata ao Luar enquanto, ao fundo, vista da grande janela do estúdio, a noite funda emitia seu som de maravilhoso e terrífico silêncio.

Não havia lua e um vento frio entrava pela janela, aberta. A sala era de requintada magnitude. Móveis sóbrios, candelabros iluminando luz de mil candelas. O ambiente ainda tinha a aura pesada, de luz e sombra, solidão necessária àquele momento ao mesmo tempo austero e fascinante.

Solidão em estado puro, escuridão mediada de pontos de luz. Do silêncio das mãos brotava a música, até o último e final compasso. Depois, tudo parou. Silêncio. Parado, nos confins do estúdio, o mordomo perguntou, com voz de suprema reverência: - Senhor, seu Madeira – e aproximou-se com sutil presença. Ele fez um gesto com a cabeça. O criado entendeu: deixou a garrafa sobre uma mesinha ao lado do piano e retirou-se, aliado do silêncio trevoso que impunha respeito noturno e indevassável.

Ele tomou do cálice e o sorveu, profundo. Depois, as notas do piano voltaram a se combinar com as pequenas chamas das velas, misturando-se depois com a escuridão. Havia uma beleza estranha, de formas fátuas e sombrias. Havia uma inesperada forma de felicidade naquele instante de música à meia-luz. Uma felicidade incompreendida e dispersa, uma felicidade improvisada como improvisados agora eram os acordes que surgiam naquele esplendor de cores desbotadas pelo encontro da luminosidade vacilante das velas, com a presença forte da escuridão.

Depois, parou. Tomou do cálice do Madeira e colocou o cristal, como uma lente, contra a luz de um candelabro. Observou com interesse o efeito luminoso sobre o vermelho do vinho. O líquido continha, no interior do vidro finíssimo, uma pequena e fulgurantemente forte manifestação de vida. Os dedos, habilidosos, manipularam o cálice, girando-o lentamente contra a luz. Percebeu a beleza da bebida, requintada obra de arte feita de líquido e luz.

Com a outra mão, dividia aquele prazer com o teclado. Nas notas mais agudas trinou um canto sem voz. Pois, se não podem falar, os pianos podem cantar um idioma de muitas compreensões. O artista estava velho. Recluso à sua vivenda, ancestral, velha, abraçada por gerações centenárias, o grande solar era um templo de solidão, onde somente se admitia a presença dos tempos de ontem. A cabeleira basta, grisalha caiu-lhe sobre a testa. Ele voltou a pousar o cálice sobre a mesinha. Depois, serviu-o com outra dose farta.

Depois, virou o cálice de uma vez só. Vórtice que se perdeu em sua boca. Degustou o vinho com violência de sabre. Voltou a encher o cálice e tornou ao toque magnífico e tátil das teclas.Com excepcional domínio técnico, em gênio assombroso de convivência com o piano, dominou a melodia sem temor. Olhos fechados, sabia exatamente qual a nota seguinte, o acorde mais perfeito, o tom mais acertado, o som mais vigoroso.

Ao mesmo tempo terno e cálido, dominante e suave, explosivo e abafado. Conhecia, ah!, como conhecia, as noites infindas e as notas mais terríveis, incrivelmente brutais da criação sensível e protetora. Tinha em sua natureza, guardadas, eternamente guardadas, mas prontas a explodir, todas as canções que ainda não haviam nascido, mas que estavam lá, todas elas, guardadas e vivas, todas as canções.

Era um homem feito de acordes. O cálice na mão, a outra mão ao piano. Depois, o cálice sobre a mesinha e as duas mãos criando música para a noite escura. O vento se escoou pela grande janela e o frio veio de fora para ferir sua pele de artista da solidão. Agradeceu ao frio pela sua presença de saudade. Saudade?

Saudade dos tempos de juventude, quando cavalgava os campos e gritava aos companheiros que seria o vencedor. Saudade dos tempos em que, aplaudido pela Corte, deslumbrava os salões da nobreza com às vezes sóbria, mas sempre divina e bravíssima suavidade dos tons, meio-tons e improvisos toques no teclado vivo. Ele mesmo um aristocrata. Saudade dos tempos em que, também divinamente, atiçava os comentários e falatórios de sua vida dissoluta, mulheres e vinho. E todos, apesar, o aplaudiam. Pois o sabiam autêntico e decidido seguidor do hedonismo de estar vivo. E o invejavam. Daí, os aplausos.

Parou. Parou de tocar. Lentamente, muito lentamente, retirou a cabeleira grisalha da testa e caminhou para a janela em direção ao frio. Despiu o traje pesado, o fraque elegante, retirou a camisa, finíssima, de tecido quase diáfano e se apresentou à noite. Torso nu, abriu os braços para a escuridão e sentiu o toque de punhal que só o frio tem. Virou-se rápido e correu para a garrafa do Madeira. Virou-a aos lábios e sentiu a bebida descendo pela garganta como um adorável veneno.

Sorveu mais, mais e mais, até sentir que o vinho fazia parte do seu sangue. Como um louco correu até a adega e trouxe mais uma garrafa. Voltou ao estúdio e, antes de retornar ao piano, apoderou-se de um charuto, um puro, e acendeu-o à luz de uma vela. Deu um trago profundo, sentindo a fumaça misturar-se até o mais íntimo de si.

Sorriu. Depois, riu, riu alto, gargalhadas. Ninguém ouviria o ruidoso murmúrio daquela alegria selvática, hedonista, fria e gritante. Estava vivo e gritava ao silêncio que estava vivo. Olhou a noite, viu a escuridão e divisou o lado fronteiro à sua herdade, legado antigo de família. Voltou ao Madeira e sorveu-o de um gole só. Dirigiu-se ao piano e atacou o teclado com vigor incomum. 

E surgiu uma melodia incandescente, meditativa e forte, como se uma vaga luminosa iluminasse as suas mãos, ou uma tempestade, no mar, fosse vagalhão incontido e se esbater contra o casco do navio. E dedicou sua última composição a uma dama, Madame Charlotte de Savigny, a de olhos macios como doces olhos de gazela. Seu único e derradeiro amor. Depois entregou-se à lua que afinal surgia, e desapareceu no espaço.

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