quinta-feira, 23 de março de 2006

O remédio da morte

“Fiado somente para maiores de 130 anos, acompanhados dos seus avores e trazendo os documento.” (Letreiro de barraca, na Redinha) Claudenício, 26 anos, pegador de caranguejo, chegou naquela noite à casa e teve de Mariana, a mulher, a notícia mais terrível que poderia receber: Valdetário, o único filho do casal, estava em febre: “Ele está pegando fogo.” Angustiado, lançou um olhar medroso para a figurinha que se debatia na rede esgarçada. O medo não era da doença em si, pois confiava que fosse só uma inflamação de garganta, e ele poderia salvar o menino comprando algum remédio - o medo era de não ter o dinheiro para o tal remédio. Sua mão tímida percorreu o pobre labirinto do bolso vazio e somente encontrou terra molhada do mangue. “E agora?” - ele virou-se para a mulher. “Sei não” - ela balbuciou. Claudenício olhou para um lado, para o outro. Via pouco, a luzinha da lamparina mal dava para mostrar a carinha esquálida do filho tremendo de febre. Um vento frio e ruim rosnava em volta do casebre ao lado das águas malcheirosas, de onde vinham nuvens de mosquitos se refestelar nos corpos magros da família. “Tem dinheiro não”, disse como se Mariana já não soubesse. Ela estendeu a mão e tocou o corpo do filho. “Vala-me minha Mãe de Deus, que o menino quase que me queima de febre.” E a mulher afundou num pranto lancinante, penetrante, cortando de sofrimento os ouvidos de Claudenício. “Mariana”, ele disse, enquanto pegava uma faca e colocava na cintura, “vou atrás do remédio.Vou lá na farmácia. E só volto com ele. Enrole o menino num pano, dê água, molhe ele e espere: eu volto.” A mulher curvou a vista e ele desapareceu no meio da lama e da noite. Correu o mais que pôde, até chegar a uma pequena farmácia. Bateu na porta, bateu de novo e outra vez, até que Seu Pereira, o dono, apareceu. Claudenício contou tudo depressa, garantiu que pagava logo que pudesse: “O senhor sabe que eu pago, porque já paguei outras vezes, não sabe?”, mas o homem não se compadeceu:"Tem remédio não. Sem dinheiro, tem remédio não." Claudenício sentiu raiva, mas sentiu principalmente humilhaçãol. Ele, um homem pobre e honrado, jamais havia deixado de pagar uma dívida. O dono da famácia era um que sabia disso. Depois, a raiva superou a humilhação e a humilhação virou coragem, uma coragem doida, vinda não se sabe de onde. Uma coragem pintada de desespero. Então, ele não contou conversa: puxou a faca e encostou no pescoço do homem: “Não tou robando. Tou pedindo emprestado e pago com dinheiro, quando puder.” Tremendo, Pereira entrou na farmácia, enrolou um pacotinho num papel e entregou a Claudenício: "Taí o remédio, pode levar. Claudenício voltou para casa. Correndo em meio à lama, o mais que podia . Chegou, entrou em casa e mandou a mulher dar uma colherada ao menino: “Uma não: dá logo duas.” Ela obedeceu, sem sequer verificar o que estava dando ao filho. O menino engoliu tudo, em meio a uma careta terrível. E logo vieram um choro mais forte, convulsões e, depois, a morte do menino, em meio ao silêncio noturno da lama. O dono da farmácia havia entregue a Claudenício um poderoso raticida. Era o que dizia o rótulo, cúmplice da escuridão e daquele desespero.

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