terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

 O menino que queria ser um “grande criminoso e ficar muito famoso”

Por Emanoel Barreto

Ingressei no jornalismo em 1974. Tinha 23 anos. Editoria de polícia do Diário de Natal. Para integrar a equipe de repórteres passei por uma longa entrevista com o diretor do jornal, o poderoso Luiz Maria Alves, que, além de um enorme repertório de perguntas sobre história e atualidades, ainda me fez datilografar com grande rapidez trecho do livro “Os mortos são estrangeiros”, do escritor, poeta, cronista pintor, desenhista e magnífico boêmio Newton Navarro.

Satisfeito com meu desempenho ele determinou que fosse eu contratado, isso sem levar em conta que não era estudante de jornalismo e jamais tivera qualquer contato com a profissão. Outro dia darei detalhes a respeito de como foi essa entrevista com Seu Alves também, o Coroa, como era conhecido na redação.

Fiquei como redator para aprender a dominar os rudimentos da técnica narrativa, mas muitas vezes ia à rua, às delegacias, aos becos e vielas para conhecer os ambientes criminais e fazer entrevistas. Numa dessas digamos, visitas, depois de entrevistar alguns presos –  maus elementos, como se dizia –, vi que em meio aos tais maus elementos estava um menino. Um garoto que havia praticado pequeno furto numa casa próxima à delegacia, fora imediatamente capturado e agora estava ali, aguardando a viatura que o levaria à Delegacia de Menores.  

Como era um menor não o entrevistei, apesar de haver questionado o delegado sobre estar um menino em meio a bandidos e desordeiros. O policial me contou o que você acabou  de ler, eu disse “ok” e segui em direção ao carro do jornal. Nisso, a viatura  estava chegando para levar o pequeno prisioneiro. Eu já estava quase indo embora quando ele gritou: “Ei! Você é da reportagem?” Respondi que sim e ele disse que queria “fazer uma reclamação.”

Fui até a sua cela sem entender qual seria a tal reclamação e ele, dedo em riste, disse: “Você é um jornalista muito ruim.” Eu quis saber a razão a da minha falha e ele explicou: “Sou um tremendo bandido. Tirei uma chinfra, tô preso, mereço ser entrevistado.”

Começava aí um dos diálogos mais surrealistas da minha vida: um menino com cerca de 13 anos, com sua jovem vida pautada por valores degradantes oriundos da miséria, da desagregação familiar, brotado da sua infame condição de vida exigindo o direito de ser tratado como um bandido. Ou seja, queria ser apresentado como periculoso e temível. Que prerrogativa...

Sintetizando: expliquei que não poderia entrevistá-lo. Ele era um menor e o certo seria estar em casa ou na escola. Respondeu que se estivesse em casa o pai “tava bebo”, a mãe encolhida no chão depois de uma surra e os irmãos gritando no meio da lama onde estava atolado o barraco onde moravam.

Então, garantiu, o melhor era ele crescer logo, virar criminoso, matar gente, fazer assalto e baixar a ripa nos canas. Assegurou: “Aí, eu vou virar manchete de última página e botar pra reabrir em cima dos bestas!”

Registre-se: a tal última página era, no Diário de Natal, o espaço onde se publicavam as desgraças cotidianas, os crimes e desastres da vida, o descalabro dos homens – seus desatinos, fracassos e mortes.

Eu, abismado, percebi que, naquelas circunstâncias, pensando daquele jeito, aquela criança iria ser mesmo um grande criminoso. Virei-me para o delegado e perguntei: “Não dá para livrar a cara do menino? Ele deve ter só marcado alguma bobeira...”

A resposta foi “Não”.

“Por quê?”

O delegado me olhou e disse: “Roubou uma toalha...”

Balancei a cabeça, perplexo, e saí.

Quanto ao menino nunca soube se ele se tornou um grande criminoso. Creio que não teve tempo de crescer.

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