quarta-feira, 28 de abril de 2021

"Quem é aquele rapaz, será um africano?"  

Por Emanoel Barreto

Sertão central do Rio Grande do Norte. 1961. Encantado com a paisagem eriçada e rude eu seguia montado no passo tardo de um cavalo manso, escolhido com cuidado pelo velho Patrocínio, tio da minha Mãe. Ele não queria que o sobrinho praciano sofresse os percalços de montar um cavalo de cabra de peia. Chamou-me e disse: "Pode montar sem medo. Esse é Soberano. Vai para onde você mandar."

E lá fui eu percorrendo os caminhos, sendas abertas a facão no meio da caatinga. Coisa de quatro da tarde. O vento era fraquinho, só pra dizer que tinha. O vento do sertão anda abraçado com o calor, para quem não sabe. Eu me sentia um verdadeiro caubói; Durango Kid no mínimo. E imaginava que em meio aos galhos secos, espinhos e c'roas de frade, cardeiros e macambiras, havia bandidos à espreita prontos para serem acertados pelos meus tiros  imaginários.

Soberano andou, andou e, lá adiante, vi uma figura que vinha em minha direção. Era um velho. Negro, alto, o cabelo branquinho, a barba também. Lembrava a visão clássica do Pai Tomás. Puxei as rédeas de Soberano quando o homem fez sinal como a mão. Queria que eu parasse. Aproximou-se e perguntou: "O menino é alguma coisa de Seu Patrocínio?" Respondi que sim. Ele disse: "Vim aqui pra falar cum ele, um negócio de umas vacas que quero vender."

Eu apontei, lá na poeira da distância, o rumo da casa-grande. E ele: "Então, vou pra lá."

E eu: "Vamos, que eu vou com o senhor." E saímos. Soberano mais parecia uma muralha perto do cavalinho dele. No caminho o velho contou-me coisas de suas viagens, do tempo em que vivia longe daquelas terras.

Contou, como quem conta uma epopeia, um épico, uma canção de gesta. Os olhos da minha emoção estavam arregalados, pasmos com a vida daquele sertanejo. Por um momento quase vi a meu lado Amadis de Gaula ou o próprio Aquiles, quem sabe Orlando Furioso ou Carlos Magno. Aquele homem era feito de todas as lendas e histórias que povoavam meu imaginário infantil.

E ao final, já chegando à casa de tio Patrocínio, ele revelou: "Menino, um dia ainda vô embora. Vou viajar de novo, andar pelo mundo de novo. E aí, quando eu voltar acho que as pessoas vão perguntar: 'Quem será esse rapaz, será um africano?'"

Aquela conversa, aquela figura, hoje fazem parte de lembranças que ficam guardadas em meio a memórias antigas, escondidas todas em alguma caverna de Polifemo, território traçado no mapa mais meu.

E hoje, às vezes, me pergunto: "E se um dia eu viajar? Também quero viajar. Vou viajar. E espero que quando eu voltar as pessoas também perguntem: quem será aquele rapaz, será um africano?

 

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