"Os mortos são estrangeiros"
Por Emanoel Barreto
A paciência como ato estudado e
vivido, exercitado e consciente, é prima-irmã do esperar e tem grande parentesco
com a esperança; esta, por sua vez, não se avança ao futuro, antes vive
intensamente o presente, o momento, o ato, o gesto, o fazer. Esperança aqui
como sinônimo de equilíbrio e tranquilidade.
Paciência não é resignação, abaixar
de cabeça. Ao contrário: a paciência é ativa, forte, resiliente – para usar uma
palavra que está em moda. E assim a paciência distancia-se da angústia, livra-se
do desespero e ignora a incerteza e o temor pois sabe que em alguma parte do
que chamamos futuro haverá um porto, uma chegada, um desembarque, um desejado
fim; libertação.
É esse tipo de raciocínio que
venho usando para conviver com o isolamento desde que a pandemia chegou e
instalou-se como coisa cotidiana, convertendo-se numa espécie de má companhia de
quem aceitamos a convivência por momentaneamente ser impossível expulsá-la; mas
que fique a boa distância e depois vá embora.
O dia a dia, entretanto, tem-me
mostrado como muitas pessoas não conseguem acautelar-se da perigosa realidade e
atiram-se à rua, aos bares, aos restaurantes às praias – a tudo quanto possa
gerar aglomeração e promover a sensação de escape, numa festa encardida de vírus,
encontros que têm algo de queda e júbilo deplorável.
Falando sobre como vivencio a
experiência do isolamento, como busco manter-me sereno diante de um dia a dia
que se passa como páginas em branco, lembro de quando ingressei no jornalismo,
idos de 1974. Logo você perceberá o nexo entre o então e o agora.
Foi assim: para ser aceito como repórter
precisei passar por um teste com Luiz Maria Alves, o grande construtor da
grandeza do Diário de Natal, depois naufragado em lamentável decadência. Ele fez-me
datilografar um longo excerto do livro Os mortos são estrangeiros, de Newton Navarro
– escritor, poeta, cronista, desenhista, poeta, boêmio, não necessariamente nessa
ordem.
Não lembro detalhes do que me foi
dado a transpor para o papel, mas estranhei o nome da obra e guardei-lhe o título:
Os mortos são estrangeiros. Enigmática assertiva, explica-se pelo fato de que o
morto deixa de existir, mas sua presença é imortal nas lembranças que se
alongam na memória que deles se tem, diz ele em seu livro.
Vendo o título por outro ângulo
posso entendê-lo como uma forma de expressar o que as pessoas sem paciência e
serenidade vivem: são estranhos a suas próprias vidas pois não se reconhecem em
perigo e tentam alargar seu território de festa em direção a um terreno
alagadiço de perigos e ameaças como se ali nada de terrível houvesse.
Muitos dos que vão às festas, às
insensatas reuniões onde se celebra uma alegria sem sentido é como se fossem os
tais estrangeiros de Navarro. Depois levarão a outros, muitos deles sem culpa,
os restos de sua comilança impune em forma de contágio. E então podem vir a ser
realmente mortos e efetivamente estrangeiros. E, quem sabe,
esquecidos.
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