"O delegado sou eu!"
Eu
o vi duas ou três vezes: bêbado, mirrado, bracinho fino erguido e
indicador apontado para o alto, caminhava bradando uma inútil advertência: "O
delegado sou eu! O delegado sou eu!" Ninguém contestava, até porque nele
ninguém prestava atenção a não ser eu, em minha ingênua curiosidade de menino; não sei se perplexo ou
estranhamente fascinado com aquela cena que oscilava entre o ridículo e o
comovente eu acompanhava com o olhar aquele homem trôpego e malvestido. Isso aconteceu em algum instante dos anos 1960.
Da minha casa eu o via seguir ladeira abaixo, Rua
Princesa Isabel, centro de Natal. Ele passava na calçada do outro lado
da rua e seus gestos hoje me lembram um Carlitos torto e anônimo, um
brasileiro pobre que se dizia autoridade.
Bem que eu poderia tê-lo presenteado (meninos, se
você não sabe, podem tudo) com uma linda viatura policial que naqueles
tempos eram chamadas de "tintureiras", para ele fazer valer sua
disposição de Quixote e prender todo mundo. A tintureira seria toda
pintada em preto e branco e Delegado poderia cumprir mandados, fazer
flagrantes, capturar os maus.
E
mais: eu poderia pedir ajuda aos meus amigos Zorro e Tonto, Billy the
Kid, Kit Karson, Roy Rogers, o Fantasma, Búfalo Bill, Águia Negra,
Falcão Negro, Daniel Boone, Dom Chicote, Cavaleiro Negro, Kid Colt e,
claro, Jerônimo, Aninha e Moleque Saci. Se a coisa ficasse muito feia
poderia chamar o Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda e mais: El
Cid, o imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França. Athos, Porthos,
Aramis e d'Artagnan também poderiam vir.
Eles
eram invencíveis, eram meus amigos e jamais se negariam a ajudar a mim e ao Delegado. Eu
daria a ele um dos meus revólveres de plástico, quem sabe até mesmo um
de metal, o mais bonito, o que disparava espoletas.
Com
essas armas eu mesmo prendi muitos bandidos que habitavam esconderijos
imaginários somente conhecidos por mim. Eu tinha até uma estrela de
xerife ganha numa
promoção da Toddy, premiação chamada Patrulheiros Toddy. Eu era um
Patrulheiro
Toddy e bem poderia ter ajudado ao Delegado. Mas não fiz nada. Não
chamei os caubóis meus amigos, nem os grandes espadachins, não lhe dei a
tintureira, não lhe dei meu revólver, não saí galopando a seu lado rua
abaixo.
Nada, nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e tão bêbado, um pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa Isabel.
Nada, nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e tão bêbado, um pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa Isabel.
E ele se dizia delegado. Ele só queria respeito. Porque tinha a autoridade de ser povo, pobre e cambaleante.
Após aquele dia nunca mais reencontrei o Delegado. E, acho, somente hoje descobri que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou Zorro. Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos próximos, universos imaginários, e queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo, além de querer prender bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava em ir ao Egito e fazer grandes descobertas. Não fui.
Após aquele dia nunca mais reencontrei o Delegado. E, acho, somente hoje descobri que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou Zorro. Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos próximos, universos imaginários, e queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo, além de querer prender bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava em ir ao Egito e fazer grandes descobertas. Não fui.
Hoje
penso no meu amigo Delegado, reduzido a uma réstia de lembranças. E
agora me vem, não sem um certo temor e uma fisgada de angústia: acho que
quando ergo minha voz nestes textos de internet também estou descendo
alguma ladeira e grito como o louco sublime: "O delegado sou eu! O
delegado sou eu! O delegado sou eu!"
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