No
ano de 1930 morava eu na Pensão Calango, na verdade Hotel Hospedaria S.
Francisco das Boas Almas, numa ruela na Ribeira. Dadas as suas modestas acomodações a hospedaria
havia recebido dos seus ocupantes aquele título bastante elucidativo como se vê.
Ali se arranchavam estudantes como eu, caixeiros-viajantes, ocasionais
visitantes da cidade e, algumas vezes, indivíduos de trato furtivo. Devo
supor fossem fugitivos, falsários, vigaristas e que tais.
Pois
bem, dentre esses tipos eis que chega um que se apresentou como
"alta autoridade em coisas místicas". Era um tipo alto, magro, branco de
cabelos avermelhados e crespos. Os olhos, muito pretos, completavam a
figura. Levemente encurvado, era de poucas palavras e recebia pessoas
que iam "pedir conselhos e fazer trabalhos". Quando isso acontecia ele fechava a porta do
quarto a chave e se ouviam cantorias e loas numa língua estranha.
Algumas vezes gritos horrendos; guinchos cortavam os ares e então silêncio total . Pouco depois o consulente saía dizendo "está bem. Agora está tudo bem."
Certa
noite cheguei tarde das aulas. O quarto do tal sujeito ficava nos
fundos do quintal da hospedaria e para lá me dirigi ao ouvir chorosa
ladainha que aos poucos se transformou em um batecum pesado, em meio a
grande falariço que virou cantar forte e rápido. Aproximei-me da janela
lateral e, pela fresta, vi a seguinte cena: o tipo estava entonado numa
capa preta que lhe chegava aos pés e tinha acendido uma fogueira no meio
do quarto. A seu redor uma ciranda de mulheres dançava um samba de
doidos.
Ao fundo sentava-se um homem de cabelos brancos, que gritava: "Ele vai chegar? Ele vai chegar?"
E
aquele círculo de dementes respondia:"Ele vai chegar! Ele vai chegar!"
e continuava a dança. O da capa preta dava voltas rápidas e fortes
fazendo o manto abrir-se, o que lhe dava poderosa aparência de
taumaturgo do além. Continuemos: para melhor ver a cena subi ao telhado
do quarto, afastei umas telhas e de lá continuei a acompanhar o amalucado
espetáculo.
Para
completar, um amigo meu, colega de hospedaria, também fora atraído por
aquela loucura, e ao ver-me encarapitado correu para perto e
ficou a meu lado. Perguntou: "O que diabo é isso?, e eu espondi: "Só
Deus sabe o que é isso. É negócio de doido."
Nesse
instante o homem de cabelos brancos insistiu: "Ele vai chegar? Ele vai
chegar?", ao que turma toda respondia: "Sim! Ele vai chegar!, e o homem
retornava: "E vai trazer o dinheiro? Vai trazer o dinheiro?!"
E todos, no mesmo tom, garantiam: "Vai trazer o dinheiro! Vai trazer o dinheiro!"
Aí,
aconteceu outra loucura: as mulheres se apoderaram de latas cheias de
água e jogavam no sujeito, dizendo: "Toma este banho de salvação! Fica
limpo que a fortuna vem!". Encharcado, o pobre começou a dar saltos
enormes e se dizia forte e poderoso e berrava: "Agora que ele chegue e
traga o meu dinheiro! Estas fortes orações vão me fazer ficar rico!"
Então
o mestre daquela cantilena apoderou-se de uma chibata e passou a surrar
o infeliz que gritou: "O que diabo é isso? Pelo amor de Deus, o que
diabo é isso?", enquanto a chibata ligeira o açoitava. O mestre
respondeu que aquilo era a "limpeza" da alma. "A surra divina retira o
pecado!" e lepo no lombo do coitado, que se desesperava e insistia com a pergunta: "Ele vai
chegar? Ele vai chegar? Quero que chegue, e chegue logo com o meu dinheiro!"
Nesse
momento meu amigo se mexeu. Foi o suficiente: as telhas se deslocaram,
um caibro cedeu, outro também, uma ripa se partiu e o telhado veio
abaixo. Caímos bem no meio da bagaceira. O feiticeiro gritou: "Pronto!
Ele chegou: e veio logo dois. Veio logo dois, tá vendo?!" Diante disso o
homem surrado não se fez de rogado e atirou-se ao meu pescoço
perguntando "onde estava o dinheiro". Queria saber se eu "era o
representante das almas" e como iria ajudá-lo a sair da falência de sua
bodega.
De
nada adiantava negar que fosse eu o representante das almas. O homem continuava sua inquirição e partia para
cima de mim e do meu amigo. O mestre gargalhava alto e sua ciranda de
mulheres loucas dançava sem parar. Nessa luta a fogueira cresceu e
tomou conta do quarto. Todo o Hotel Hospedaria S. Francisco já estava
desperto e correu para ver aquela cena de alucinados. O corre-corre e o
falariço tomavam conta de tudo. As chamas se espalhavam e assumiam
proporções enormes e o homem lá: "Você é o representante? O representante da almas? Se é o
representante, onde está o dinheiro? Cadê o dinheiro que Deus mandou,
fila da puta?"
O
dono da pensão e os moradores, vendo isso, partiram para cima de mim,
do meu amigo e dos desmiolados, gritando: "Bando de catimbozeiros! Bando
de catimbozeiros! Arreia o pau no lombo deles! Arreia o pau!"
E o pau cantou. Uma velhinha, empunhando uma cruz e uma enorme vela, como se já não bastasse tanto fogo, cantava:
"Queremos Deus, homens ingratos
"Ao Pai supremo, ao redentor
"Zombam da fé os insensatos
"Erguem-se em vão contra o Senhor
"Dá nossa fé, oh! Virgem, o brado abençoai
"Queremos Deus que é nosso Rei
"Queremos Deus que é nosso Pai"
"Ao Pai supremo, ao redentor
"Zombam da fé os insensatos
"Erguem-se em vão contra o Senhor
"Dá nossa fé, oh! Virgem, o brado abençoai
"Queremos Deus que é nosso Rei
"Queremos Deus que é nosso Pai"
Para
atiçar ainda mais a assembléia de dementes aconteceu o seguinte: nas
imediações morava um padre que sofria de insônia. Quando ouviu toda
aquela lamúria, cantilenas, loas e proclamas alucinados, veio ver o que
era. Percebendo que o louco se atirava ao meu pescoço correu para me
ajudar, gritando: "Em nome de Deus parem com isso!" E dizia: "Irmãos,
vamos rezar em outro credo. Abaixo o catimbó!"
Mas deu tudo errado. As
pessoas pensaram que o padre fazia parte do magote e baixaram-lhe o pau, urrando: "O
pade tá chamando Deus pra perto do Cão! O
pade tá chamando Deus pra perto do Cão! O pade é do catimbó!" No meio da
confusão o mestre de todo aquele pandemônio se evadiu, bradando: "Taí!
Isso é a paga por terem prejudicado os trabalhos!" E sumiu junto com as mulheres loucas.
Para encerrar: o bodegueiro foi dominado e eu fui posto a ferros. O padre
também foi preso. Meu amigo conseguiu escapulir. Logo depois a polícia
chegava e fomos parar na delegacia. Lá, o delegado, já quase duas
horas da manhã, disse: "Bota todo mundo no xilindró: o comerciante que é desordeiro, o padre, que é padre catimbozeiro e esse aí,
que é o secretário do Cão".
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