sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A história de muitos crimes

O jornalista Gustavo Sobral publicou o seguinte texto a respeito de "Os crimes do Padre Heusz".

As veladuras de um romance jornalístico
Gustavo Sobral

Contava Osório Dantas que uma certa história da fundação da cidade era lá uma lenda, como se lenda fosse coisa qualquer, ao que Cascudo repreendeu, “menino essa lenda saiu do quengo de Manoel Dantas”. Manoel Dantas foi dos nossos primeiros jornalistas, a par de ser também advogado, redator de A República, jornal de Pedro Velho. 
Escrevia os artigos de fundo, aqueles textos pra tapar buraco do espaço que sobrava e que, futuramente, nos jornais, evoluiria para a crônica com sabor dos dias, foi este mesmo Manoel Dantas que num arroubo de invencionice precisando de um artigo de fundo urgente lançou um futuro pra cidade em que as dunas a cobririam, era o tal “perigo iminente”, portanto, certo Cascudo, e mais certo Osório, que não contestou, certos de saberem que certas lendas ou histórias quando saem de certos quengos tem todo o respaldo da grandeza da criação, pois o mesmo do jornalista Manoel Dantas é o que se diz do jornalista Emanoel Barreto a contar o romance crimes do padre Heusz.

Como Clarice Lispector em “A hora estrela”, O romance de Barreto conta como ele próprio romance se faz na surpresa de ao contar uma história se contar como se conta a história. O autor revela a sua fórmula de criação compondo narrativas em camadas indissociáveis. Contar a história e também contar como se conta a história, um recurso de muito apuro, e só possível e alcançado por aquele que tem não só o domínio da palavra, mas conhece a arte do narrar e do dizer. 
 Outra faceta, outra camada, é a aula de jornalismo que se apresenta na própria forma de fazer o romance, uma grande reportagem; na própria forma de tratar os liames do jornalismo, é a redação e as funções do repórter ali tratadas e até explicadas no savoir faire, nesta pena do farsesco. A filosofia constrói também o enredo, as justificativas, os motivos que levam as ações do padre, escritos de forma apurada e mesmo assim simples no dizer, um exercício de jornalismo que é tornar para todo público o complexo passível de compreensão. O padre Heusz é um Sócrates invertido e um sofístico do falso, subverte a ordem do discurso quando enfrenta o perigo para dizer as suas vítimas, “só sei que tudo sei”.

Peça literária que tem a agilidade da narrativa econômica de pormenores, também recuperação de um tempo passado que coloca o romance na escola dos romances históricos. Tão inventivo quando um “Xangô de Baker Street” ou de “O homem que matou Getúlio Vargas”. As revelações ardilosas e despudoradas coram os leitores como coraram as revelações de confessionário de uma casa de Budas ditosos.
 Há uma recursividade que enlaça histórias dentro de histórias, as amarram, imiscuem, tornam o que é uma coisa todas as coisas. Há narradores personagens que escrevem e falam as falas de outros personagens, é isso que se quer dizer: os pecadores tem a voz na voz das cartas do padre, então é o ponto de vista do padre que conta ao narrador que nos conta a história, eis o mistério intrincado de uma criação literária astutíssima. 
Surpresa e toque de mistério podem fazê-lo romance policial, mas se engana quem apenas acha que encontra entretenimento. O mistério, o absurdo que não beira ao fantástico e fica no realismo do incrível crível lembra as tramas dos contos de Lygia Fagundes Telles, uma força criadora que quando mais nos surpreende mais é capaz de surpreender. E quem sabe uma ligação com a literatura potiguar, o padre louco insano nos hospícios de Alex Nascimento.

Cada carta e cada crime é um capítulo que também pode ser visto a parte e que junto constrói um Decameron de desatinos, entre os valores terrenos e os valores divinos. Os discursos que se constroem nos diálogos e falar do jornalista e do padre são peças de elegância dignas de um jornalista Emanoel Barreto. Na velocidade da cena e no gosto pelo mistério registra-se com “Os crimes do Padre Heusz”, quem sabe, uma crítica às conclusões apressadas marca do nosso tempo que só se tecem por julgamentos óbvios e por posições estruturadas em binômios antagônicos bem/mal, ruim/bom, e em que mais vale o individualismo em que tudo que se faça tem por único juízo as razões e os propósitos, a moral própria que justifica a necessidade de guiar o destino, faço isto porque eu sou o certo e o centro da verdade e o saber. Todos temos um pouco de padre Heusz...

Memórias do jornalismo e dicionário do seu jargão, história das redações à máquina de escrever e linotipo, labirinto das reviravoltas impossíveis, cenas com a eletricidade cinematográfica que recuperam um heroísmo a Indiana Jones, quando o herói jornalista é macunaímico, totalmente às avessas, histórias em histórias em que os personagens aos escrevê-las se apagam como se apagam quando as páginas se passam e as histórias se passam, tudo é o tempo presente, até a derradeira página que leva até o final uma surpresa a cada linha, o lido é sabido até que tudo se apague em palavra e se agarre o desfecho final quando a literatura há de dizer, com galhofa, se é ou não verdadeira ficção ou se habita e acontece nos subterrâneos da cidade e que vive dentro de nós mesmos. Brilhante.

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