terça-feira, 24 de abril de 2012


A ilha flutuante

Certa vez exilei-me numa ilha flutuante. Exílio não é, a rigor, a palavra certa uma vez que fora contratado por seu dono e senhor para a ocupar e fiscalizar. Fiscalizar o quê?, perguntei-lhe, já que estaria ali sozinho e ao largo do mundo. Fiscalizar tudo, disse-me ele. E se não acontecer nada?, insisti. Então, fiscalize o nada, exigiu. E assim foi determinado e assim foi feito, conforme vos contarei. A ilha estava ancorada a cem metros da praia e a ela um barco me levou. Tão logo soltei a âncora, a ilha se pôs a navegar. 


Devo dizer que é emocionante, comovente e glorioso habitar uma ilha flutuante. Selvática e bela, uma ilha flutuante não pode afundar, pois não é barco; grande e larga, floresta a ocupa de lado a lado, sem que seja habitada por selvagens ou outros homens agressivos e perigosos; livre, pois flutua, torna-se um país sem estar presa a um continente.

Tão logo parti o céu se fez escuro e poderosa tempestade se abateu sobre o oceano e sobre a ilha. Para escapar da perturbação dos elementos atirei-me em linha reta, correndo pela mata em busca de abrigo, que surgiu na forma de caverna acolhedora e vasta. E como estava ali para fiscalizar entrei na gruta enorme e me pus a esquadrinhá-la. Havia enormes salões e declives que me levaram bem a fundo. Estranhamente, uma suave claridade se espalhava pelos ambientes, mesmo os mais distantes, nos quais me internava. Ouvia, bem fraco, o troar da tempestade.

Não sei quantos dias passei fiscalizando a caverna, mas é preciso informar que, quando de lá saí, após longo sono, contava com a idade de 70 anos. Ao chegar à ilha, contava com a idade de 20 anos. Ao sair, descobri que não me encontrava só: a ilha era agora habitada por animais, todos sábios e ponderados, segundo se diziam. 
Informaram-me que não se haviam apresentado ao momento de minha chegada porque, jovem e tolo, não os compreenderia e assim esperaram meu amadurecimento. E o que fazeis aqui?, indaguei. Nada, garantiram. Nada, a não ser colocarem-se à minha disposição para ser fiscalizados. Mas eu, como não podia fiscalizar o nada, nada fiscalizei e, ao não fazer isso, estava trabalhando intensamente em nada.

Os animais regozijaram-se ante minha proficiência vazia. Perguntaram então o que desejava que fizessem. Disse-lhes que deveríamos todos seguir em direção à praia, a fim de observar o navego da ilha. Ali chegamos rapidamente e veio então nova tempestade. Corri para a caverna. Os animais fugiram para o centro da mata.

Cumpri na caverna o mesmo périplo fiscal e adormeci. Ao acordar, contava com 20 anos. Isso quer dizer que num processo de engenharia temporal reversa, haviam se passado 50 anos. E a ilha estava de volta ao mesmo lugar de onde eu partira. O seu senhor e dono pediu-me as contas do que fiscalizara e apresentei-lhe a história que ora vos relato. Ele aprovou com louvor o meu relatório e mandou-me embarcar novamente, a fim de continuar fiscalizando o nada. 

Destarte, nada me resta, a mim e a vós que ledes meu canto, que continuar a flutuar sem rumo ou prumo, ao léu e ao nada, que é a herdade que de há anos recebemos. E nada mais havendo a tratar, encerro este texto, que vem aí nova tempestade.

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