Fotos: Blog do Senadinho
Às vezes penso conversar com mortos
Emanoel Barreto
Às vezes penso conversar com mortos. Mas não me intimido. São amigos meus, fantasmas cordiais que me chegam à noite ao escritório, assentam-se e ficam a me olhar, como que deles cobrando as lembranças - querem saber se não os esqueci. Há pouco chegou-me o Majó Theodorico Bezerra, rajado gato do mato sertanejo, homem do velho PSD. Perguntou-me então do que dele me lembrava.
Contei que um dia, ele, já então sem mandato, a política dobrada para sempre em seu embornal catingueiro, aparentava ter a memória abalada pelo outono pesado e denso da velhice. Caminhava pelo salão nobre do então Palácio Potengi apoiado em rústico cajado. A seu lado, um jovem carrancudo e de de aspecto agreste lhe servia de amparo e guia. O Majó balbuciava uma algaravia de sons sem sentido. Perguntei se se lembrava daquilo: fez que sim com a cabeça, um sorriso irônico pintado em sua boca, como que dizendo: fantasmas, ao contrário dos vivos, nunca ficam caducos.
Mas, voltemos ao assunto: eu era repórter político da Tribuna do Norte e o segui naquela caminhada. O ano em que isso aconteceu não lembro. Mas recordo que ele estava muito velho. O Imperador do Sertão andava cambaleante. O título lhe fora concedido em 1978 pela Rede Globo, num documentário de Eduardo Coutinho. Mas o Imperador não mais tinha aquele pisar rijo, de velho feito de aroeira-do-sertão. O Majó riu muito quando lembrei do fato: - É verdade, é verdade...
Ele deambulava pelo salão, olhava os lustres, observava o assoalho de madeira nobre. Chegou-se a uma janela e de lá esteve olhando a Ribeira onde vivia encastelado no Grande Hotel, que dirigira há muit'anos, pagando ao Estado uma ninharia de arrendamento. Sorriu outra vez. Um sorriso névoas. Coisa que a que só um espectro é dada.
Depois foi a um salão menor, onde um enigmático piano repousava mudo. Nunca entendi aquele piano no Palácio Potengi. Talvez tocasse, à noite, sonatas para a escuridão do poder que dormia. O Majó aproximou-se do grande instrumento e percutiu uma de suas teclas. Foi o único som que ouvi daquele ser solitário, todo feito de madeira preta, criteriosamente preta.
Após, apoiando-se no seu servo, ele caminhou passos tardos até a larga escada de madeira, forte passarela que dava acesso ao Poder. Desceu-a e perdeu-se para sempre da minha visão. Morreu dia 4 de setembro de 1994.
E hoje, quando a mim chegou, como outros fantasmas, que são mais relembranças que espectros, pude afinal com ele fazer a última entrevista:
- Majó, o que o senhor fazia naquele dia, lá no Palácio?
E ele, com um riso de meia-lua, olhou-me bem nos olhos e respondeu placidamente:
- Barreto, fui homem que teve de tudo, fui a Paris e lá estive em Pigalle e no Moulin Rouge, andei pela Índia e por outros cantos do mundo. Aqui, fui de tudo: fui Majó e Imperador, mandei e desmandei nas minhas festas na fazenda Irapuru, o povo dançando com a minha banda de música. Irapuru é o pássaro que canta e Tangará, cidade também minha, é o pássaro que dança. Também mandei em Natal e mandei ali, ali mesmo, no Palácio Potengi. Sabe o que eu estava fazendo lá, Barreto? Lá, naquele dia em que você, notando que eu estava caduco, me acompanhou calado?
- Não, Majó - respondi.
- Eu estava procurando o meu passado, Barreto. Um homem tem que ser dono do seu passado. Eu estava olhando ali se o passado tinha parado no tempo. Se não tinham bulido naquelas coisas, naquele salão, naqueles cortinados, nos lustres, naquele piano, na porta que dava para o gabinete do governador. No chiado do chão de madeira. Eu estava vendo, Barreto, se o passado estava em dia.
- E estava, Majó?
Estava, Barreto, estava. O passado estava em dia. Estava tudo no seu lugar. E outra coisa: em política não há gratidão nem reconhecimento. Em política é o acerto, é o acordo e é o dinheiro. Depois, é andar ligeiro. Em política, aprenda, o passado sempre está em dia...
Deu boa noite e esfumaçou-se no silêncio do meu jardim. Um vento frio invadiu o escritório e me gelou a alma. Fui obrigado a beber um dose de uísque caubói.
4 comentários:
Adorei passear com vocês pelo Palácio Potengi e ver os fantasmas se esfumaçarem na sua sala! Daria um ótimo curta! Abraços!
Que texto,que personagem, caro Emanoel. Abraços.
Que texto, que personagem, caro Emanoel. Abraços.
Sou suspeito para elogiar o senhor, mas esse texto é fora de série. O senhor deveria juntar esse com aquele de tii Zé Guilherme e fazer um livro com textos como esse. Abraço!
Bruno Barreto
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