quarta-feira, 26 de maio de 2010

Fotos: Blog do Senadinho
Às vezes penso conversar com mortos
Emanoel Barreto

Às vezes penso conversar com mortos. Mas não me intimido. São amigos meus, fantasmas cordiais que me chegam à noite ao escritório, assentam-se e ficam a me olhar, como que deles cobrando as lembranças - querem saber se não os esqueci. Há pouco chegou-me o Majó Theodorico Bezerra, rajado gato do mato sertanejo, homem do velho PSD. Perguntou-me então do que dele me lembrava.

Contei que um dia, ele, já então sem mandato, a política dobrada para sempre em seu embornal catingueiro, aparentava ter a memória abalada pelo outono pesado e denso da velhice. Caminhava pelo salão nobre do então Palácio Potengi apoiado em rústico cajado. A seu lado, um jovem carrancudo e de de aspecto agreste lhe servia de amparo e guia. O Majó balbuciava uma algaravia de sons sem sentido. Perguntei se se lembrava daquilo: fez que sim com a cabeça, um sorriso irônico pintado em sua boca, como que dizendo: fantasmas, ao contrário dos vivos, nunca ficam caducos.

Mas, voltemos ao assunto: eu era repórter político da Tribuna do Norte e o segui naquela caminhada. O ano em que isso aconteceu não lembro. Mas recordo que ele estava muito velho. O Imperador do Sertão andava cambaleante. O título lhe fora concedido em 1978 pela Rede Globo, num documentário de Eduardo Coutinho. Mas o Imperador não mais tinha aquele pisar rijo, de velho feito de aroeira-do-sertão. O Majó riu muito quando lembrei do fato: - É verdade, é verdade...

Ele deambulava pelo salão, olhava os lustres, observava o assoalho de madeira nobre. Chegou-se a uma janela e de lá esteve olhando a Ribeira onde vivia encastelado no Grande Hotel, que dirigira há muit'anos, pagando ao Estado uma ninharia de arrendamento. Sorriu outra vez. Um sorriso névoas. Coisa que a que só um espectro é dada.

Depois foi a um salão menor, onde um enigmático piano repousava mudo. Nunca entendi aquele piano no Palácio Potengi. Talvez tocasse, à noite, sonatas para a escuridão do poder que dormia. O Majó aproximou-se do grande instrumento e percutiu uma de suas teclas. Foi o único som que ouvi daquele ser solitário, todo feito de madeira preta, criteriosamente preta.

Após, apoiando-se no seu servo, ele caminhou passos tardos até a larga escada de madeira, forte passarela que dava acesso ao Poder. Desceu-a e perdeu-se para sempre da minha visão. Morreu dia 4 de setembro de 1994.

E hoje, quando a mim chegou, como outros fantasmas, que são mais relembranças que espectros, pude afinal com ele fazer a última entrevista:
- Majó, o que o senhor fazia naquele dia, lá no Palácio?

E ele, com um riso de meia-lua, olhou-me bem nos olhos e respondeu placidamente:
- Barreto, fui homem que teve de tudo, fui a Paris e lá estive em Pigalle e no Moulin Rouge, andei pela Índia e por outros cantos do mundo. Aqui, fui de tudo: fui Majó e Imperador, mandei e desmandei nas minhas festas na fazenda Irapuru, o povo dançando com a minha banda de música. Irapuru é o pássaro que canta e Tangará, cidade também minha, é o pássaro que dança. Também mandei em Natal e mandei ali, ali mesmo, no Palácio Potengi. Sabe o que eu estava fazendo lá, Barreto? Lá, naquele dia em que você, notando que eu estava caduco, me acompanhou calado?

- Não, Majó - respondi.

- Eu estava procurando o meu passado, Barreto. Um homem tem que ser dono do seu passado. Eu estava olhando ali se o passado tinha parado no tempo. Se não tinham bulido naquelas coisas, naquele salão, naqueles cortinados, nos lustres, naquele piano, na porta que dava para o gabinete do governador. No chiado do chão de madeira. Eu estava vendo, Barreto, se o passado estava em dia.

- E estava, Majó?

Estava, Barreto, estava. O passado estava em dia. Estava tudo no seu lugar. E outra coisa: em política não há gratidão nem reconhecimento. Em política é o acerto, é o acordo e é o dinheiro. Depois, é andar ligeiro. Em política, aprenda, o passado sempre está em dia...

Deu boa noite e esfumaçou-se no silêncio do meu jardim. Um vento frio invadiu o escritório e me gelou a alma. Fui obrigado a beber um dose de uísque caubói.

4 comentários:

Luara Schamó disse...

Adorei passear com vocês pelo Palácio Potengi e ver os fantasmas se esfumaçarem na sua sala! Daria um ótimo curta! Abraços!

Jarbas Martins disse...

Que texto,que personagem, caro Emanoel. Abraços.

Jarbas Martins disse...

Que texto, que personagem, caro Emanoel. Abraços.

Anônimo disse...

Sou suspeito para elogiar o senhor, mas esse texto é fora de série. O senhor deveria juntar esse com aquele de tii Zé Guilherme e fazer um livro com textos como esse. Abraço!

Bruno Barreto