quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Jornalismo e Direitos Fundamentais

Transcrevo artigo do professor José Coelho Sobrinho, membro do Forum Nacional de Professores de Jornalismo. Trata-se de reflexão suficientemente embasada, para que se pense com seriedade a respeito da prática da profissão. Segue:

Jornalismo e Direitos Fundamentais

Alguns biógrafos de Joseph Goebbels, quando tratam de sua vida amorosa,
relacionam seu namoro com Anka Stalhern como sendo o indutor de seu romance
Michael (publicado em 1929). É possível que a paixão de Michael por Hertha,
figuras centrais do enredo da obra, retrate a vida do Goebbels e Anka, entre
1918 e 1922. Anka reaparece na vida de Goebbels quando ele, já ministro,
conseguiu-lhe um trabalho na redação do Die Dame.

Fatos como esse foram comuns na história oculta da imprensa brasileira desde os seus primórdios. Desocupados e desempregadas, sem a menor aptidão pela
profissão, se tornaram jornalistas pelo simples fato de serem amigos (ou algo
mais) de alguém que detinha algum poder político ou econômico que pudesse
interferir na saúde financeira da empresa de comunicação.


Jornalismo no Brasil, até 1969, era sinônimo de subemprego para muitos
“profissionais”. Era regra, por exemplo, uma emissora de rádio contratar
funcionários públicos como “setoristas” para cobrir os seus próprios
departamentos. Juntando os baixos salários pagos pela repartição e pela empresa radiofônica, o jornalista do setor tinha um valor agregado aos seus vencimentos representado pelo “agrado” dado por aqueles que o procuravam para resolver alguma situação irregular junto ao órgão público. Multas de trânsito,
regularização de loteamentos, re-ligação de água, asfaltamento de ruas e até
nome de vias públicas faziam parte do conjunto de problemas que esses
“profissionais de imprensa” conseguiam resolver.


Essa promíscua convivência entre o poder, o jornalismo e a conduta aética do
comunicador foi drasticamente reduzida com a regulamentação profissional. Ainda que a legislação tenha sido excessivamente pormenorizada na descrição de funções e especialidades, não se pode negar que ela veio como uma solução para amainar os efeitos do mau jornalismo. Contudo, como toda aplicação de leis no Brasil, foram produzidas emendas para acomodar alguns casos, não raro inspiradas em interesses particulares.


Com a abertura democrática, as reformas feitas na legislação foram insuficientes
para impedir que algumas categorias, em defesa das liberdades de informação e
opinião, se insurgissem contra o que foi taxado de entulho autoritário. E a
história começou a ser reescrita. Os defensores da abertura do mercado
profissional baniram alguns motivos que foram propulsores da regulamentação.
Deixaram de citar, por exemplo, que muitos jornalistas foram cassados e
perseguidos por defenderem as liberdades democráticas e que suas vagas no
mercado foram preenchidas por “profissionais” fiéis ao regime.


Resistência - Na Escola de Comunicações e Artes, um dos berços da
regulamentação, os professores que permaneceram no quadro docente do
Departamento de Jornalismo e Editoração, resistiram durante dois anos aos
ataques da ditadura que pretendia substituir os professores encarcerados e
cassados por “jornalistas” e professores que desfrutavam da confiança dos
representantes da ditadura com assento na Reitoria.


Os argumentos apresentados levam a crer que a legislação sobre a profissão de
jornalista já cumpriu o seu desígnio. Por esse motivo os ataques à sua
existência se intensificaram e o discurso centrado na defesa da liberdade de
informar e opinar avança e encobre as verdadeiras razões que alimentam essa
pressão sobre os destinos do direito fundamental do cidadão de ser informado e
de opinar.


Mesmo com o Decreto-Lei 972-69 em plena vigência, é possível desvendar algumas razões subjacentes à campanha contra a regulamentação profissional. As práticas que esperam a liberalização do mercado profissional, criadas pelas empresas com a anuência de jornalistas, apontam para o descolamento da atividade de sua função social, tornando-a parte de uma mera engrenagem de relações de trabalho assalariado.

Algumas emissoras de rádio, por exemplo, têm boa parte da grade entregue a
articulistas que, em geral, têm os seus comentários veiculados a cada seis
horas de programação. É claro que esse tipo de participação é importante para a
sociedade. Ela necessita da opinião abalizada de suas lideranças. Entretanto, a
grande maioria desses articulistas defende interesses próprios ou de
organizações. Fazem direta ou indiretamente marketing de suas consultorias para agregar valor aos seus contratos.

Os políticos encontram nesse expediente uma forma de estarem presentes junto ao eleitorado visando à manutenção do poder ou alimentando o desejo de tê-lo. Essa demonstração de “responsabilidade social”, não raro, é uma permuta: a emissora recebe algum tipo de aconselhamento do articulista e ele pode vender serviço, produto ou idéia aos ouvintes.

No jornalismo impresso essa prática é menos corrente nos grandes veículos,
entretanto, nos pequenos jornais ela cobre boa parte da área impressa de textos
próprios. A título de cobertura social, literatura e serviço público, os
colaboradores tornam dispensáveis os jornalistas e criam consciente ou
inconscientemente uma rede de dominação de idéias e fatos que sufocam o
noticiário de interesse da comunidade. Esses colaboradores são movidos pelo
egocêntrico desejo de pertencerem ao olimpo local.


Na televisão, a distorção da essência do Jornalismo, talvez seja mais grave do
que nas demais medias. Os apresentadores, travestidos de jornalistas e usando o vocabulário da área, entrevistam e editorializam falas a respeito de fatos. Sem
o menor vínculo com a Ética Jornalística, mas buscando pontos de audiência
necessários à manutenção de seus programas e à negociação de contratos, esses pseudojornalistas fazem do fato um show e do sensacionalismo um padrão.


O modelo de noticiar da Internet, principalmente o que tenta fazer o chamado
jornalismo em tempo real, veio sepultar de vez a natureza jornalística da
notícia. Na luta por alguns segundos a mais de audiência em relação ao
concorrente, as informações são transformadas em fatos jornalísticos e estes em
notícias sem qualquer critério de noticiabilidade. Os redatores na maioria das
vezes desconhecem a que público se dirigem e por isso mesmo são responsáveis
por redes de rumores e boatos que se disseminam pela rede sem a possibilidade
de controle. A essência do Jornalismo, representada pela apuração, inexiste.
No mercado profissional está havendo uma verdadeira subversão. Algumas empresas,para se livrarem dos custos sociais de seus empregados, implementaram a prática de transformar os seus jornalistas em “Pessoas Jurídicas”.


Essas “Pessoas Jurídicas” lançaram-se no mercado do lucro fácil e se transformaram em codificadores autônomos, que vendem a força de trabalho que coordenam (formada por alguns profissionais autônomos e muitos estagiários) pela maior oferta. Não interessa a esses olimpianos a história da empresa, do empregador, os fundamentos ideológicos e os compromissos sociais e políticos (ou a falta deles) que pairam sobre a organização. São “Pessoas Jurídicas” que, como camaleões, assumem os matizes ditados pelo patronato. Perderam de vez o vínculo do jornalismo com a sociedade e, por isso mesmo, desprezam os princípios éticos e os compromissos da profissão com os direitos fundamentais do cidadão.

Bombardeio - Esses motivos são as partes mais visíveis do bombardeio que vem
sendo feito contra a regulamentação da profissão. É importante observar que a
batalha já se dá dentro do próprio território dos jornalistas. Os insurgentes,
munidos de discursos envolventes, conquistam a simpatia daqueles que se
aproveitam da oportunidade para, sorrateiramente, minar o campo inimigo. Não
faltaram “jornalistas” que se aproveitaram do recente vácuo jurídico para obter
o registro profissional. Mais do que nunca é preciso entender que o Jornalismo é uma das formas de defesa dos direitos fundamentais do homem. A sua existência pressupõe a proteção de direitos básicos do indivíduo, principalmente daquele que não têm acesso aos meios. E essa certeza é dada pelo comprometimento do verdadeiro profissional com a ética.


A defesa da primeira geração dos direitos fundamentais - aqueles relacionados à
liberdade - coloca o jornalista na linha de frente pela limitação do poder
público, principalmente porque o seu compromisso maior é com o exercício pleno
da cidadania. A existência de uma classe eticamente organizada e com
compromissos formais com essa bandeira garante que os cidadãos tenham acesso aos meios, independentemente de cor, raça, religião, nível intelectual,
condição educacional, trabalho e classe social.


A igualdade, que constitui a segunda geração dos direitos fundamentais, tem no
jornalista um instrumento importante para que ela se consubstancie. A sua ação,
que por dever de ofício prega a audiência dos vários lados do fato, permite que
os direitos sociais dos cidadãos possam ser protegidos contra a prevalência do
poder econômico, social ou político. A ação jornalística procura dar a todos os
membros da comunidade a possibilidade de acesso à informação e à opinião.
A defesa da terceira geração dos direitos fundamentais também é parte integrante das atividades do jornalista. O preceito fundamental de que “todos são iguais perante a lei”, portanto com direito ao desenvolvimento, à comunicação, ao consumo e a própria individualidade, faz parte da cultura jornalística que,dentro de seus limites de atuação, oferece à sociedade condições para defender-se das organizações que venham colocar em riscos esses direitos.


O discurso de que o fim da regulamentação da profissão de jornalista será a
retomada da liberdade de informação torna-se, pois, uma falácia. A
possibilidade de que todos tenham acesso à comunicação não garante que todos
façam uso dela. Obstáculos de toda ordem podem afastar o cidadão de seu direito de opinar e informar e permitir que aqueles que têm habilidades, competências técnicas e, de certa forma, intimidade com os meios, possam construir aparelhos ideológicos que destruam esses direitos fundamentais que fazem parte da organicidade das funções jornalísticas.


A discussão que se apresenta atualmente para a sociedade, em grau de maior
importância do que a própria regulamentação profissional, é a que refere ao
conceito de Jornalismo face às novas tecnologias e recentes práticas de
comunicação patrocinadas pelos modernos meios.


Construir blog ou site com formato jornalístico não garante que o conteúdo o
seja, assim como nunca foi correto afirmar que é jornalista quem escreve em um
meio com a forma de jornal. A natureza do Jornalismo está consubstanciada na
apuração e na responsabilidade ética. O Jornalista é o valor agregado que dá à
informação o status de notícia por se tratar de um profissional compromissado
com os seus fundamentos.


A regulamentação, com certeza, não garante que o jornalista cumpra as obrigações idealmente inerentes à sua função social. Ela, por si só, não o credencia como defensor dos direitos do cidadão. Mas, a considerar a nossa história recente, é um instrumento que institui valores e comportamentos que resultam em segurança para as instituições que emanam da sociedade democrática.

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