terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Um frio de tarde sem fim

"Deus poupou-me do
sentimento do medo."
(Juscelino Kubitscheck)

A mulher subiu à redação trazendo um estranho pedido nos lábios: denunciar uma chacina, um morticínio intenso havido numa remota granja, onde seres vivos haviam se entredevorado até o fim, sem ter outra opção de alimento. Era uma senhora de cerca de 50 anos, mas 50 anos sofridos, cansados, cheios de perplexidade.

Caminhava meio encurvada, um vestido simples sobre o corpo meio balofo, os cabelos grisalhos arrumados de qualquer jeito sobre a cabeça de testa engelhada. Nunca entendi porque ela compareceu ao jornal para me contar aquilo, uma vez que não tinha qualquer relação com os envolvidos no morticínio e o fato já fazia algum tempo de ocorrido.

Mas ela ali estava e precisava ser ouvida. Mas o movimento no jornal era tamanho que eu mal tinha tempo de parar, a fim de dar-lhe atenção. Ela contava uma história aos pedaços, paradas, freios verbais, tudo ditado pelo meu corre-corre, em pique de fechamento, comecinho de noite.

De repente eu me virava e dizia: “Bom, mas continuando...” E ela tentava retomar sua história, até ser interrompida novamente: algum repórter me pedia uma melhor angulação para a matéria que estava por redigir.

E assim o tempo se passava. Até que reuni forças e me retirei para um canto com a mulher. Em resumo, contou-me o seguinte: numa granja, em tal município ( não me lembro o nome do município), alguns irmãos abandonaram tudo e foram embora, sem qualquer explicação. Abandonaram a propriedade, os animais, tudo, ao léu, sem deixar ao menos um caseiro para cuidar.

A ventania passou a ser companheira de portas e janelas, o silêncio apoderou-se de todos os cômodos, o negrume da noite endoidecia até mesmo o mais corajoso dos homens. E aí, aí veio a tragédia que ela queria me contar: na pocilga, esfomeados, os porcos, sem ter o que comer, sem poder fugir, partiram para um cruel, cruento e total ciclo de canibalismo, devorando-se uns aos outros.

Os guinchos dos animais, contou, eram tão terríveis, que as mães das cercanias achavam que algum monstro desalmado estava vindo para pegar seus filhinhos. Ela contou-me essa surrealista história e ficou assim: parada, fixa em meus olhos, como quem espera remissão ou sentença. Jornalisticamente, nada havia a fazer, uma vez que o fato se passara há meses e certamente não restaria mais nada do que se dera.

Mas até hoje me recordo da incrível história e do que pensei, enquanto ela descia as sombrias e estreitas escadarias da Tribuna do Norte, verdadeiros labirintos cretenses, e se perdia para sempre de minha visão: “Senhora, compartilho de seus estranhos sentimentos. O drama solitário da vida se ferindo, me cala no corpo um frio de tarde sem fim.”

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