terça-feira, 21 de novembro de 2006

Matou os velhinhos para ser honesto

O Estadão publicou o seguinte, a respeito do assassinato do casal de idosos em São Paulo: "O desempregado Luís Eduardo Cirino, de 29 anos, que confessou ter assassinado a facadas o casal Sebastião Esteves Tavares, 71, e Ilda Gonçalves, 68, no bairro de Perdizes, em São Paulo, na sexta-feira, pretendia apenas furtar dinheiro e objetos de valor para pagar do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) da residência onde morava."

O texto contém uma falha grave: a formulação redacional quase que justifica o crime ao indicar que o matador "pretendia apenas" praticar um furto para pagar o IPTU. A condição de desemprego, que ganha saliência no texto como segunda palavra do parágrafo inicial da matéria, dá a ênfase necessária para inserir o criminoso no perfil de uma pessoa desamparada e desesperada. Alguém que chegou ao extremo de matar para manter-se honesto e íntegro para com o pagamento de um tributo.

E o que o repórter fez errar? Simplesmente reproduziu as informações da fonte, do advogado que defende Cirino, do jeito que as recebeu. Veja:"A informação foi passada pelo a advogado Yvan Gomes Miguel, responsável pela defesa do desempregado, que era vizinho do casal e foi preso no domingo após se entregar à polícia. 'A intenção dele era furtar, e não roubar', declarou Miguel. Segundo ele, seu cliente estava desesperado com a dívida acumulada por conta do atraso nas contas do IPTU, mas não soube precisar o valor total."

Ao dizer que o criminoso queria furtar, não roubar, o advogado encaminha o crime para uma situação de menor gravidade, aliando a isso o desespero do dliente para manter-se quite com o fisco municipal.

Insisto: qual o erro do repórter? Apegar-se à literalidade do que lhe ditou a fonte, que no caso funcionou como elemento formulador primário da matéria. Um redator mais experiente teria formatado o texto com todas os dados, porém segmentando-os, a fim de que a notícia não acabasse por se tornar uma peça de defesa prévia.

O relacionamento jornalista/fonte é complexo, pois reúne interesses às vezes conflitantes. No caso, o jornalista buscou a exatidão dos fatos e, de tão preso a essa formalidade, permitiu que a fonte manipulasse a matéria. Isso demonstra incapacidade profissional para tratar de assuntos até mesmo de menor complexidade como esse, mesmo levando-se em conta sua condição de ocorrência trágica e humanamente inaceitável.

Imagine um jornalista assim entrevistando um suspeito de corrupção. Caso se detenha aos ditames da fonte, sua falta de domínio textual resultará num material que mostrará aos leitores o corrupto como um querubim.

Certa vez, numa conversa de redação, ouvi um comentário a respeito de falhas jornalísticas. Contava-se a respeito de um filho que havia espancado a mãe. A manchete fora a seguinte: "Bateu na mãe sem motivo justo". Do ponto de vista kafkiano com que o título foi redigido, o mesmo se aplica ao caso do criminoso de São Paulo: "Matou os velhinhos para ser honesto."

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