domingo, 3 de setembro de 2006

Quando o sofrimento vira lucro

"A dor da gente não
sai no jornal."
Trecho de MPB

A notícia abaixo é do Estadão. Os comentários virão após o texto, cuja leitura mostra o quanto a vida tornou-se um espetáculo e o mercado invade até mesmo o campo do respeito à intimidade mais dolorosa e merecedora de resguardo.

VIENA - A jovem Natascha Kampusch falará na próxima semana (esta semana) na televisão austríaca sobre seus mais de oito anos de cativeiro no porão da casa de seu seqüestrador, Wolfgang Priklopil, de quem escapou em um momento de distração deste.

Durante 20 minutos, a moça, que hoje tem 18 anos, explicará diante das câmaras da emissora pública de televisão ORF as aflições e o desespero que sofreu durante os 3.096 dias que passou presa em um minúsculo calabouço construído por Priklopil.

A imprensa local contou neste sábado que, desde que fugiu, Natascha ficou sob os cuidados intensos de uma equipe de terapeutas e psiquiatras em um lugar secreto de Viena e afastada da imprensa, que lhe fez mais de 300 pedidos de entrevistas.

Para acabar com o assédio da mídia, a jovem, aconselhada por especialistas, optou por conceder uma entrevista sobre seus anos como prisioneira do engenheiro de telecomunicações de 44 anos, que cometeu suicídio se atirando na frente de um trem no mesmo dia em que ela fugiu, em 23 de agosto último.

Depois da entrevista, que "não durará muito mais de 20 minutos" - segundo o assessor de imprensa de Natascha, Dietmar Ecker -, a televisão austríaca venderá a fita e os direitos de exibição à imprensa internacional.

Um circo de horrores
Ao ler o segundo parágrafo da matéria, a impressão que se tem é que, dado ao estado emocional da jovem, a TV estatal seria o órgão de comunicação mais apropriado para tratar esse tipo de informação. Como TVs estatais não têm por objetivo o lucro, pelo menos em princípio, a finalidade da matéria seria, unicamente, expor a público um caso chocante de desumanidade, sob a ótica de um jornalismo humanista, para que a vítima se expusesse e impregnasse corações e mentes das pessoas com a sua dor, percebendo, de alguma maneira, solidariedade e amparo vindo dos demais seres humanos, já que a matéria deverá ser exibida globalmente. E pronto. Caso encerrado.

Na seqüência do texto, entretanto, percebe-se que a informação a respeito da entrevista, após "mais de 300 pedidos", foi prestada pelo "assessor de imprensa" de Natascha. Nesse ponto a questão muda de figura: assessores de imprensa custam caro, seu objetivo não é representar doentes ou vítimas, mas personalidades ou entidades que por algum motivo procuraram ou se tornaram alvo do interesse da mídia. Assessores de imprensa são jornalistas que administram fatos, tanto quanto um empresário administra investimentos.

Mais: as características espetaculares da entrevista assumem seus contornos mais claros quando se tem a informação de que a TV estatal ORF venderá os direitos de exibição da entrevista.

Detalhe: a entrevista não terá mais que vinte minutos. O motivo é de ordem técnico-jornalística e também mercadológica, ou seja: trata-se de informação mitigada. E por um motivo muito simples: vinte minutos serão nitidamente insuficientes para que ela exponha todo o seu drama.

Num tempo tão curto assim, ou ela conta a história, de forma resumisíssima, ou fala do seu desespero íntimo, de como viveu internamente aqueles dias terríveis, perdida no labirinto interno de suas angústias. Com isso, ganha-se em expectativa, estima-se a possibilidade de uma nova e rentável aparição, para dar continuidade à história.
É o que em publicidade se chama de teaser: o enigma, a tentação, a curiosidade não totalmente satisfeita. O que teremos a seguir? Vamos ver pelas frinchas da vida...

Frente ao que foi dito, permite-se a suposição de que a moça está participando conscientemente de todo o processo midiático. Sabe que foi montado um circo de horror-show ao seu redor e está desfrutando de maneira mórbida e esperta toda a lucratividade dos seus quinze minutos de fama. Quem sabe, no futuro venha um livro? Já pensou num filme?

Com tudo isso, a TV pública austríaca coloca por terra, pelo menos em relação a si própria, o conceito de jornalismo público, que repudia o sensacionalismo, a exploração barata (nesse caso nem tanto) da miséria humana, o imediatismo, a crueldade jornalística.

A dar-se crédito à matéria do Estadão, que publicou texto da agência EFE ontem, há algumas contradições: se a jovem estava em "local secreto", não estaria sofrendo assédio da imprensa. Se alguém está assim, tão escondido, como pode estar sendo assediado? Como teria recebido mais de "300 pedidos de entrevista", se ninguém podia com ela se comunicar?

Surge então a figura de um assessor de imprensa, para cuidar do assunto. É essa figura quem dá a pista para a orquestração que estava sendo montada. Se a moça não queria falar à imprensa, que se mantivesse distanciada, oculta, buscando na seqüência de sua vida o direito a se manter em anonimato. Por que o assessor de imprensa? Por que esse canal de comunicação com o ambiente de mídia? Por que ela tem interesse, sim, em se expor.

É aí que se configura a organização, o fato administrado, a situação jornalisticamente cifrada, o atiçamento da curiosidade popular, como num espetáculo chulo, onde alguém ou algo disforme ou licencioso está em exibição. Seu declaratório, a se confirmar a informação, deverá ser pungente, tocante. Sua gestualidade, corporalidade, expressão facial comporão um todo performático, um tipo, uma personagem. É isso o que espera a mídia, é isso o que espera agora o circo, no sentido romano do termo: o cruento espetáculo de alguém se despedaçando.

Ou eu estou muito errado, ou há algo de podre no reino dessa dinamarca.

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