"Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio.
Quando minha cólera está diminuindo e eu
perco a vontade de cobrar o que me devem,
eu sento na frente da televisão e, em pouco tempo, meu ódio volta."
Rubem Fonseca, no conto "O Cobrador"
Dona Nely, a senhora de 68 anos que concedeu um testemunhal à TV Globo para a novela Páginas da Vida, quando abordou superficialmente aspectos de sua vida sexual, trouxe para a sua vida não um drama televisivo, mas todas as dores da realidade: após revelar como ocorrera seu primeiro orgasmo, somente aos 45 anos, perdeu o emprego de oito anos, foi ridicularizada em comunidades do orkut, teve problemas de relacionamento com o filho e a filha, está cheia de contas e de dívidas.
Como compensação, pediu um emprego de faxineira na Globo, mas recebeu como resposta que "fosse se virar." E os 300 reais que a Rede Globo lhe havia prometido pela participação, até hoje não foram pagos.
A informação é do Globo On Line, que pertence ao Sistema Globo, acrescentando que o advogado Marcos Neves deu início a uma ação de reparação por danos morais e materiais contra a TV Globo, Manoel Carlos e Jayme Monjardim, responsáveis por Páginas da Vida.
A ingenuidade de Dona Nelly foi duramente punida por confiar que seu depoimento, pelos aspectos humanos que continha, contribuiria para fazer uma ligação direta, sintonia fina com o real, que a novela supostamente tenta retratar.
Segundo a matéria o depoimento durou mais de uma hora, quando falou sobre sua vida no morro da Mangueira, seus 17 filhos (vivos apenas quatro), sua fé no espiritismo. Enfim, todo um drama, um repertório de vida, do qual foi pinçada apenas uma declaração, exatamente a que mais chocaria o telespectador.
Do modo como foi exposta, Dona Nelly ficou representada como um ser humano que oscila entre o ridículo e o grotesco, pelo fato simples de falar a respeito de sua intimidade; como se o fato de obter prazer sexual seja algo pecaminoso, portanto indigno e necessariamente objeto a ser escondido e recoberto pelo manto do falso pudor.
Novelas não são exatamente o palco mais apropriado para tratar de assuntos sérios, questionar valores, suscitar polêmicas, propor soluções a problemas sociais, como atualmente roteiristas e diretores aparentam fazer. Novelas têm por objetivo abarcar audiências, ganhar pontos sobre emissoras concorrentes e assim fixar uma publicidade veiculada a preços astronômicos em horários de pico.
É falsa a suposição, assim como é falsa a intenção dos noveleiros, de tratar a realidade, trazendo ao telespectador situações de similitude com o dia-a-dia. O drama do favelado, o tiroteio entre bandidos e polícia, tudo isso é re-tratado, estetizado, puxado para dentro do roteiro de maneira a dar a impressão de que se estão criticando problemas sociais ou existenciais.
A situação, hoje, de Dona Nelly, comprova que o aparelho televisivo cresce e se nutre das coisas da vida para, apenas isso, fazer da vida uma história, uma história rentável, vendida a grandes anunciantes.
Agora, as páginas da vida de Dona Nelly se transformaram num livro difícil de ser lido, especialmente porque a única e triste leitora desse livro será, sempre, ela mesma. E pior: é um livro de uma só pagina, que traz em poucas palavras a terrível realidade da personagem solitária em que a transformaram.
Na novela de Dona Nelly, não haverá capítulo seguinte. Muito menos final feliz.
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