“A mão que afaga é a
mesma que apedreja.”
(Augusto dos Anjos)
Em crônica anterior contei como um maníaco, José Vilarim Neto, quase extermina toda uma família. Durante um acesso de desequilíbrio matou duas irmãs, a avó destas e uma empregadinha grávida. Praticou necrofilia com um dos corpos, cavou um grande buraco no quintal da Granja Capim Macio, onde ocorreram os crimes, e depois esperou para matar a mãe da família, a alemã Ruth Looman e a sua filha mais nova. Ela e a menina conseguiram sobreviver, após brutal luta da mulher com o Monstro de Capim Macio, como ele então ficou conhecido.
Se você rolar a página, logo abaixo encontrará a primeira crônica.
Hoje, contarei como, cerca de 20 anos após os crimes, voltei ao local para uma nova matéria, numa nova tragédia, ocorrida ali, na Granja Capim Macio, um local habitado pela dor.
Fazendo uma viagem no tempo, vamos retroceder: eram seis horas da manhã de um dia entre janeiro a março de 1975, quando a Kombi do Diário esbarrou à minha porta, com a buzina aos berros. De dentro do carro saltou o magérrimo, capetíssimo, elétrico fotógrafo Paulo Saulo, cuja máquina há muito parou de bater.
“Barreto, vamos lá em Capim Macio, que mataram gente como o diabo” , foi logo avisando. Detalhe: eu tinha, no máximo, cinco meses de jornalismo e a matéria era muito difícil. Requeria: frieza para ver cenas de sangue, calma para anotar os dados, fontes na polícia, habilidade para entrevistar – sem chocar – os familiares sofridos e revoltados, faro para captar coisas que os outros jornalistass não estivessem vendo e, afinal, rapidez para fazer tudo isso, voltar à redação e produzir o melhor texto possível. E essa prática eu não tinha.
Em cinco meses de jornal você não desenvolveu ainda todas essas qualidades, que somente se aperfeiçoam com o passar do tempo. O jornalista Cassiano Arruda me deu umas instruções, dizendo que a matéria deveria ser romanceada, ou seja: evitar o jargão típico do noticiário, a notícia seca, concisa, optando-se por um tratamento tipo história, com começo, meio e fim. Esse artifício permite captar toda a emoção dos fatos e dar ao leitor a sensação de visualizar a cena. É técnica eminentemente literária, exige prática. E essa prática eu também não tinha.
Eu outras palavras: eu estava perdido.
Depois de falar com Cassiano, na redação, meti-me na Kombi e fui até a cena dos crimes. Vi o buraco onde Vilarim havia jogado os corpos sofridos de suas vítimas, vi o rifle de cano partido por Ruth, na luta grotesca. Senti o sofrimento da família e, ao dar-me conta de mim, estava completamente desorientado: como eu ficava mais na redação e o repórter Pepe dos Santos fazia campo, eu não tinha fontes policiais e isso era suficiente para prejudicar a coleta de dados.
Piorando a situação: ninguém da família para falar. Aí, dei sorte: ao encostar-me ao lado da porta, duas senhoras, certamente muito amigas da família, conversavam a respeito dos crimes. E não é que elas sabiam de toda a história, até mesmo com detalhes? Foi só acalmar os nervos e anotar, silenciosamente, todo o drama, relatado na crônica anterior e sintetizado na abertura deste texto. Pouco depois um delegado deu uma entrevista coletiva e confirmou o que eu havia anotado.
Vinte anos depois
O tempo passou, eu deixei o Diário, cumpri outras missões. Mas, nos caminhos e descaminhos da vida, eis-me de volta ao Diário, cerca de 20 anos depois. E não mais como homem de polícia, mas editor do noticiário de Cidade. E um dia, não é que ouço o mesmo Pepe dos Santos dizer que, na casa onde fora a Granja Capim Macio tinham havido mais dois crimes?
Os crimes, conhecidos no noticiário como “O crime do pé-de-lã”, tinham acontecido há tempos, bem antes do meu retorno ao Diário, mas a descoberta de que foram na mesma granja eram o detalhe de valor, o lance de qualidade da matéria, o rastro de sangue se espalhando pelo tempo.
Pepe estava indo para o local. E aí me meti na conversa: “Espere, Pepe. O repórter dessa matéria sou eu. Vamos voltar à granja, para ver como ficou, qual o clima que existe por lá.”
Fomos.
Chegamos.
Mas, aí, as coisas já estavam bem diferentes: Capim Macio já não mais era o bairro silvestre de há 20 anos. Ao redor da casa outras casas, e ruas, e becos, e pessoas passando. Nada mais da bela granja, uma casa aprazível, preguiçosa, que convidava a uma convenção de redes, brisas e luar. Não havia mais a sensação de se estar entrando num pequeno bosque, para se chegar a uma casinha, lá longe, escondida. Assim era a Granja Capim Macio.
A casa fora destruída e em seu lugar existia uma construção de arquitetura medíocre, tijolo por tijolo, a mísera estética da gravidade. Só. De modo algum reconheci a granja, mas, Pepe, sim: “É aqui mesmo”, garantiu. Pensamos em entrar, mas tememos que houvesse cães. Criamos coragem, entramos. Passo a passo, esperando o suposto e temido ataque. Mas não havia cães. Encontramos na casa apenas uma solidão que falava através de dobradiças que rangiam. Um vento frio cortava salas e o corredor. O chão parecia sofrer, ao ser pisado. Era como que um processo de sufocação, um clima de abandono, o abandono dos acorrentados.
Ali, naquela casa, havia morado um casal. Isso, anos depois da tragédia de Ruth e Vilarim. Resumindo o caso, o segundo caso, foi assim: o marido era trabalhador do petróleo e descobriu que em suas ausências era traído pela mulher. Um dia fez que ia sair mas não foi, voltou de surpresa à casa, flagrou e trucidou a mulher e o amante em meio a grande luta. Sangue, muito sangue. Era o destino daquela casa: dor, sofrimento, gritos, gritos na noite eterna de tudo o que não compreendemos.
Fiz minha anotações, agora já tão senhor dos fatos, preparado, bem diferente do repórter de há 20 anos atrás, tonto, sem uma só fonte policial. Eu disse: “Vamos embora? Já acabei.” Pepe concordou, com um sinal de cabeça. Os registros que eu fizera descreviam a atmosfera, o ambiente, a alma da casa, sua essência acabrunhada. Não havia personagens, somente a solidão e o silêncio ajudariam a compor o texto... O gancho da matéria era a coincidência de tantos crimes num mesmo lugar. Dei por encerrado o trabalho e fomos embora.
Quando saímos, bati o portão da rua com força, como quem quer deixar para trás um passado que não vale a pena. Caminhava para a Kombi, quando tive a impressão de ter ouvido, longe, baixinho, uma gargalhada. Mas, sabe?, acho que foi só impressão... Espero...
4 comentários:
A "empregadinha" era uma garota de 12 anos e não estava grávida. Ruth não é alemã, é paulista.
Cara Tereza,
Agora, uma explicação: o uso do termo no diminutivo, teve exatamente o seguinte propósito: passar ao leitor a idéia de alguém muito jovem. Não foi um diminutivo que amesquinhasse sua condição de trabalhadora; mas uma palavra que, no contexto em que foi colocada, buscou dar uma idéia da juventude agredida, juventude que, circunstancialmente, era encontrada na pessoa de uma pequena prestadora de serviços do lar. Em nenhum momento, uma "empregadinha", alguém minúsculo, desimportante, dispensável, inferior.
Se você ler este texto, Tereza, gostaria que o recebesse como a expressão mais sincera de um repórter. Que já viu e ouviu, senão de tudo, mas muito do que o mundo, vasto mundo, tem a nos dar de pior e mais cruel. Até mesmo quando um repórter, na busca de fazer o certo, acaba ferindo alguém que, por motivos que desconheço, termina por sentir-se ofendida.
Um abraço,
Emanoel Barreto
gostaria muito de conhcer as pessoas que sobreviveram , meu avô cuidou delas por um certo tempo , até antes de meu avô falicer eles sempre iam visitar meu avô , mas faz um certo tempo e não lembro mais dela e minha vozinha tbm ja se foi era que sabia contar toda essa historia p/ gente da familia.
juliocesardn@hotmail.com
Gostaria de saber o local exato. Por acaso existia uma imensa tamarineira nessa granja. Quando o senhor retornou v- vinte anos depois - encontrou a tamarineira? Preciso muito saber desse detalhe.
brasilcentauro@yahoo.com.br
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