O menino que queria ser um “grande criminoso e ficar muito famoso”
Por Emanoel Barreto
Ingressei no jornalismo em 1974. Tinha
23 anos. Editoria de polícia do Diário de Natal. Para integrar a equipe de repórteres
passei por uma longa entrevista com o diretor do jornal, o poderoso Luiz Maria Alves,
que, além de um enorme repertório de perguntas sobre história e atualidades, ainda me fez datilografar com grande rapidez trecho do livro “Os mortos são estrangeiros”,
do escritor, poeta, cronista pintor, desenhista e magnífico boêmio Newton
Navarro.
Satisfeito com meu desempenho ele
determinou que fosse eu contratado, isso sem levar em conta que não era
estudante de jornalismo e jamais tivera qualquer contato com a profissão. Outro
dia darei detalhes a respeito de como foi essa entrevista com Seu Alves também,
o Coroa, como era conhecido na redação.
Fiquei como redator para aprender
a dominar os rudimentos da técnica narrativa, mas muitas vezes ia à rua, às
delegacias, aos becos e vielas para conhecer os ambientes criminais e fazer entrevistas.
Numa dessas digamos, visitas, depois de entrevistar alguns presos – maus elementos, como se dizia –, vi que em meio
aos tais maus elementos estava um menino. Um garoto que havia praticado pequeno
furto numa casa próxima à delegacia, fora imediatamente capturado e agora estava
ali, aguardando a viatura que o levaria à Delegacia de Menores.
Como era um menor não o entrevistei,
apesar de haver questionado o delegado sobre estar um menino em meio a bandidos
e desordeiros. O policial me contou o que você acabou de ler, eu disse “ok” e segui em direção ao
carro do jornal. Nisso, a viatura estava
chegando para levar o pequeno prisioneiro. Eu já estava quase indo embora
quando ele gritou: “Ei! Você é da reportagem?” Respondi que sim e ele disse que
queria “fazer uma reclamação.”
Fui até a sua cela sem entender
qual seria a tal reclamação e ele, dedo em riste, disse: “Você é um jornalista
muito ruim.” Eu quis saber a razão a da minha falha e ele explicou: “Sou
um tremendo bandido. Tirei uma chinfra, tô preso, mereço ser entrevistado.”
Começava aí um dos diálogos mais
surrealistas da minha vida: um menino com cerca de 13 anos, com sua jovem vida
pautada por valores degradantes oriundos da miséria, da desagregação familiar, brotado
da sua infame condição de vida exigindo o direito de ser tratado como um
bandido. Ou seja, queria ser apresentado como periculoso e temível. Que
prerrogativa...
Sintetizando: expliquei que não
poderia entrevistá-lo. Ele era um menor e o certo seria estar em casa ou na
escola. Respondeu que se estivesse em casa o pai “tava bebo”, a mãe encolhida
no chão depois de uma surra e os irmãos gritando no meio da lama onde estava
atolado o barraco onde moravam.
Então, garantiu, o melhor era ele
crescer logo, virar criminoso, matar gente, fazer assalto e baixar a ripa nos
canas. Assegurou: “Aí, eu vou virar manchete de última página e botar pra
reabrir em cima dos bestas!”
Registre-se: a tal última página
era, no Diário de Natal, o espaço onde se publicavam as desgraças cotidianas,
os crimes e desastres da vida, o descalabro dos homens – seus desatinos,
fracassos e mortes.
Eu, abismado, percebi que, naquelas
circunstâncias, pensando daquele jeito, aquela criança iria ser mesmo um grande
criminoso. Virei-me para o delegado e perguntei: “Não dá para livrar a cara
do menino? Ele deve ter só marcado alguma bobeira...”
A resposta foi “Não”.
“Por quê?”
O delegado me olhou e disse: “Roubou
uma toalha...”
Balancei a cabeça, perplexo, e
saí.
Quanto ao menino nunca soube se
ele se tornou um grande criminoso. Creio que não teve tempo de crescer.
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