O louco da guilhotina
Por Emanoel Barreto
Era uma delegacia nas Rocas, num domingo de 1974. Eu estava substituindo Pepe dos Santos, veterano repórter policial do Diário de Natal e senhor da maior listagem de nomes de bandidos, policiais e alcaguetes do submundo do crime no Rio Grande do Norte.
Pepe tinha no máximo o antigo curso primário, mas era um jornalista em essência. Seu sistema venoso não tinha sangue; era irrigado por tinta de jornal: repórter nato, safo e conhecedor de todo o mapa das misérias do mundo escuro e perigoso da bandidagem ele tinha jogo, sabia como entrar e sair de qualquer situação perigosa naquele universo safado e desordeiro.
Eu era um foca, o contrário de tudo isso. Não conhecia ninguém e somente era escalado para ocasiões em que ele não podia trabalhar. Aquele domingo era uma de tais ocasiões.
Mas, eu dizia que estava numa delegacia nas Rocas. Entrei e não vi nenhum policial. Eu disse “opa!, alguém nas áreas?”, mas não obtive qualquer resposta. Encaminhei-me à sala do delegado, quando um investigador apareceu. Perguntou o que eu queria e expliquei que era repórter.
Ele disse que somente havia um sujeito preso por desordem. “Quer entrevistar ele?”, e eu disse que sim. Fui até às celas e lá estava o homem. Perguntou se eu tinha autoridade para ser juiz, considerando que eu era muito jovem para o cargo. Expliquei que não era juiz, mas repórter.
Ele insistiu que eu era juiz e que já estava ali com prejulgamento para sua "condenação à morte". E afirmou: “Já estou ouvindo os martelos batendo pregos para a construção do cadafalso logo ali, ao lado da delegacia. Sobre ele ficará a guilhotina. Você é um magistrado tendencioso.”
Imediatamente compreendi que ali não estava apenas um bêbado e desordeiro, mas algum tipo de louco. Eu sabia que o jornal jamais publicaria aquela matéria, mesmo assim resolvi continuar com a estranha conversa. Perguntei o motivo da prisão e ele veio com outro disparate:
“Na Revolução Francesa fui um grande, estive ao lado de Marat e hoje estou aqui nesta masmorra e prestes a morrer.”
Dava para perceber facilmente que era alguém letrado. Resolvi parar ali a entrevista. Sabia que o assunto poderia render uma bela matéria mostrando a condição humana, seus desvãos e escorregos, mas a página policial não seria o espaço ideal. O Diário jamais iria me ceder espaço em outra página: eu era muito jovem, muito inexperiente e iriam dizer que aquilo não valia a pena. Já tinha acontecido antes.
Já ia me retirando quando familiares do preso chegaram. Eram pessoas elegantes – um homem e duas senhoras – e se dirigiram a mim: “O senhor esteve com ele?”. “Sim”, foi a minha resposta.
Quiseram saber se eu iria publicar a matéria, e eu respondi que não. Já me encaminhava para a Kombi do jornal, quando ouvi: “Ainda bem que vocês chegaram. Aquele juiz que saiu daqui queria meter-me a ferros e levar-me à guilhotina.”
Fui embora, passei em mais umas duas delegacias praticamente desabitadas de presos e terminei meu expediente. Na segunda-feira Pepe trouxe as matérias barra-pesada para a edição da tarde, já que nessa época o jornal circulava como vespertino.
O louco seria uma grande matéria, mas somente hoje voltou, agora como lembrança e um pingo de saudade dos tempos do jornalismo policial.
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