A máquina fotográfica e o gás
aberto
Por
Emanoel Barreto
Não gosto de lembrar que o Diário de Natal faliu. A redação funcionava na
avenida Deodoro num local onde hoje para mim só existe saudade. Naquele tempo, quero
dizer em 1974, o DN tinha um suplemento dominical, o Módulo 3, onde os
repórteres exercitavam seu lado mais criativo, com textos trabalhados, matérias
escolhidas para uma boa leitura de fim de semana.
Pois bem, foi numa tarde qualquer
que apareceu na redação, vindo-se sei lá de onde, o fotógrafo Paulo Saulo
trazendo uma pequena escultura em vidro de lâmpada fluorescente. Uma pequena
cegonha cheia de água colorida, que ele exibia todo orgulhoso. E contou, cheio
de si: “Isso é feito à base de fogo. O cara, o artista que faz esses bichinhos,
trabalha o vidro a quente e faz qualquer coisa com o vidro. Quer fazer uma
matéria com ele?”
É claro que aceitei na hora. Seria uma bela matéria para o Módulo. E lá me fui
eu, na sacolejante Kombi do jornal, rumo à Ribeira onde ficava a oficina do tal
artista. Chegando, Paulo Saulo, hoje falecido, saltou rápido da Kombi e indicou
onde iríamos fazer a matéria: “É ali. Naquela casa. Vamos fazer a matéria com o
cara.”
Gostaria de lembrar que naquele
tempo as máquinas fotográficas usavam filme.
Chegamos, nos apresentamos e o artista, alegre com a possibilidade de ficar
conhecido, recebeu-nos de braços abertos. Eu perguntei: “Onde vai ser a
entrevista?” Ele respondeu “ali” e apontou para a sua “oficina”. Olhei e confesso
que não gostei do que vi: um quartinho apertado, quentíssimo, cheio de bujões
de gás – lembre-se de que o homem trabalhava com fogo. Intimamente comecei a
ficar preocupado com aquela reportagem.
Fogo, local apertado, gás, nenhuma segurança. Mas, afinal, eu estava ali para
fazer a matéria. E entrei. O homem fechou a portinha do quarto, acendeu o
maçarico, pegou uma lâmpada fluorescente de onde tinha retirado toda aquela
tinta branca que recobre o vidro, que, assim, ficou completamente transparente.
Claro, tinha que ser transparente, para ser possível ver a água colorida dentro
da escultura.
Fez isso e começou a trabalhar. O calor foi aumentando até se tornar
insuportável. O homem era realmente um mestre: tornava o vidro incandescente e
trabalhava com rapidez. Paulo Saulo, encapetado, saltava de um lado para o
outro, escolhia ângulos, colocava a objetiva em planos mais altos, mais baixos,
fechava nas mãos do artesão, pegava planos gerais da cena.
Eu, que já havia feito um quem-é-quem com o homem, suava em bicas, até que ele
afinal deu por concluído o seu trabalho, apresentando-nos uma estatueta de
não-sei-lá-o-quê. Não lembro mais.
Terminamos tudo. Dei graças quando saí incólume do quartinho; até mesmo porque
nos minutos finais pensei estar sentindo cheiro de gás. Agradecemos, fomos para
a redação e fui preparar o texto. Ficou bom, bom mesmo, para a minha alegria de
foca.
Saulo embrenhou-se no laboratório fotográfico do jornal e toca a demorar, a
demorar, a demorar, até que, cansado de esperar, fui até lá e o encontrei: “E
aí, Paulo, as fotos ficaram boas?”
“Não”, foi a resposta.
“Mas por que não ficaram?”
Ele olhou para mim com a cara mais lambida do mundo: “A máquina estava sem filme.”
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