Meus planos para me tornar um grande mendigo
Quando criança eu acreditava
sinceramente que os mendigos moravam numa grande cidade, secreta e barulhenta. Uma
cidade cheia de ruas onde os mais pobres pediam dinheiro e comida aos que dentre
eles tivessem ganho mais esmolas. Os mais desvalidos dentre os desamparados
ganhavam seu óbolo e assim todos sobreviviam.
O dinheiro restante era escondido
num buraco; à noite, porém, os ricos vinham e roubavam o dinheiro. Um amigo
havia me garantido: “Os pobres é que sustentam os ricos; eles só são ricos
porque roubam as esmolas dos pobres.”
Diante de tal revelação pensei em
crescer, tornar-me um mendigo notável, ganhar muitas esmolas e alertar a meus
desgraçados pares a respeito do roubo dos ricos. Mais: iria construir uma grande
casa e ali todos seriam abrigados. Na casa haveria fogueiras em todas as salas
para que todos pudessem preparar sua comida.
Então, para dar andamento e meus magníficos
planos, resolvi fazer algo realmente notável, útil e essencial à minha condição
de futuro e talentoso pedinte: seguir um esmoleiro, aprender suas artes e
preparar-me para o futuro. Animado com a minha incursão fui dormir tão logo
chegou o anoitecer.
Quase não dormi à noite, pensando
no meu aprendizado; noite que antecedia um sábado. Veio a manhã. Acordei. Rápido
como um raio parti para a mesa, tomei o café e escapuli.
Tive sorte: dois ou três quarteirões
depois de minha casa encontrei um mendigo: um tipo de má catadura que me olhou
com um olhar de cobra, ameaçador e agudo. Tremi, baixei a vista de forma
astuta, ele seguiu seu rumo.
Eu, claro, fui atrás. Acompanhei
o sujeito, que tinha uma forma bastante peculiar de obter ajuda: deitava-se no chão
e de repente dava enormes saltos. Algumas pessoas fugiam temendo ser atacadas,
mas outras paravam e observavam a cena louca. Então, ele sacava do bolso do seu
surrado paletó um bilhete e o exibia a quem o observava.
Batata! Ele obtinha sucesso. As
pessoas, aparentemente comovidas, lhe davam moedas e até mesmo notas de razoável
valor. Perguntei a um senhor que havia lhe dado dinheiro o que dizia o bilhete;
o homem respondeu: “Ele garante que tem uma terrível doença no cérebro e salta
quando a dor se torna insuportável. Perdeu o emprego devido e essa doença e
precisa do dinheiro para sustentar sua pobre mãe. Fiquei com pena e dei dinheiro.”
O pedinte ganhou notas, moedas e
retirou-se. Continuei a segui-lo. Ele rumou a um bairro distante, um bairro
aonde eu nunca havia estado. Conclusão lógica: “É aqui que fica a cidade dos
mendigos”, festejei intimamente: “Será minha grande descoberta.”
Então resolvi falar com o homem. Precisava
confidenciar meus planos de ser um esmoler de grandes qualidades. Nisso, ele
correu de repente. Entrou num beco e sumiu. Tive a impressão de ter visto dois
soldados da polícia em seu encalço. Com certeza ouvi gritos.
Resolvi que minha aventura deveria
terminar ali e caminhei penosamente de volta à minha casa. Confesso que estava
meio decepcionado com o meu infame professor, reles vigarista.
Mas a visão de velhinhas,
aleijados e mulheres cheias de filhos pedindo esmolas confirmou minha convicção
de que aquelas pessoas precisavam de ajuda. E eu estava decido a ajudar a
todos.
Cheguei afinal à minha casa; quase
meio-dia. Fui ao quintal e reuni tudo quanto pude em matéria de galhos secos,
pedaços e madeira, carvões perdidos na areia, revistas antigas jogadas ao chão,
caixões velhos, ripas e caixas de papelão e arrumei uma grande fogueira.
Meus pais terminaram notando
minhas arrumações e logo fui levado à inquisição familiar: o que era aquilo? Já
não bastava brincar de índio e atirar flechas nos passantes da rua, fazer laços
de caubói e puxar as outras crianças pelo pescoço como se fossem gado e quebrar
pratos e vidros das janelas com as pedras de minha atiradeira?
Expliquei que meus intentos eram
bons, ou seja: queria trazer meus pobres para a nossa casa. A fogueira era para
fazer a comida delas. E já havia cavado um buraco no quintal, onde eles
esconderiam toda noite as esmolas para não ser roubados pelos ricos.
Todos iriam dormir no chão da
casa; de manhã sairiam para pedir esmolas. Eles não iam atrapalhar ninguém na
casa. Simples assim.
Meus pais ficaram perplexos. Diante
de tal e lamentável projeto minha fogueira foi desfeita em dois tempos e o
buraco imediatamente tapado. Mas ainda hoje penso que os pobres devem ter uma casa.
E tenho certeza: toda noite os ricos roubam as suas esmolas.
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