quarta-feira, 20 de novembro de 2019


Meus planos para me tornar um grande mendigo

Quando criança eu acreditava sinceramente que os mendigos moravam numa grande cidade, secreta e barulhenta. Uma cidade cheia de ruas onde os mais pobres pediam dinheiro e comida aos que dentre eles tivessem ganho mais esmolas. Os mais desvalidos dentre os desamparados ganhavam seu óbolo e assim todos sobreviviam.

O dinheiro restante era escondido num buraco; à noite, porém, os ricos vinham e roubavam o dinheiro. Um amigo havia me garantido: “Os pobres é que sustentam os ricos; eles só são ricos porque roubam as esmolas dos pobres.” 

Diante de tal revelação pensei em crescer, tornar-me um mendigo notável, ganhar muitas esmolas e alertar a meus desgraçados pares a respeito do roubo dos ricos. Mais: iria construir uma grande casa e ali todos seriam abrigados. Na casa haveria fogueiras em todas as salas para que todos pudessem preparar sua comida. 

Então, para dar andamento e meus magníficos planos, resolvi fazer algo realmente notável, útil e essencial à minha condição de futuro e talentoso pedinte: seguir um esmoleiro, aprender suas artes e preparar-me para o futuro. Animado com a minha incursão fui dormir tão logo chegou o anoitecer.
Quase não dormi à noite, pensando no meu aprendizado; noite que antecedia um sábado. Veio a manhã. Acordei. Rápido como um raio parti para a mesa, tomei o café e escapuli. 

Tive sorte: dois ou três quarteirões depois de minha casa encontrei um mendigo: um tipo de má catadura que me olhou com um olhar de cobra, ameaçador e agudo. Tremi, baixei a vista de forma astuta, ele seguiu seu rumo.
Eu, claro, fui atrás. Acompanhei o sujeito, que tinha uma forma bastante peculiar de obter ajuda: deitava-se no chão e de repente dava enormes saltos. Algumas pessoas fugiam temendo ser atacadas, mas outras paravam e observavam a cena louca. Então, ele sacava do bolso do seu surrado paletó um bilhete e o exibia a quem o observava. 

Batata! Ele obtinha sucesso. As pessoas, aparentemente comovidas, lhe davam moedas e até mesmo notas de razoável valor. Perguntei a um senhor que havia lhe dado dinheiro o que dizia o bilhete; o homem respondeu: “Ele garante que tem uma terrível doença no cérebro e salta quando a dor se torna insuportável. Perdeu o emprego devido e essa doença e precisa do dinheiro para sustentar sua pobre mãe. Fiquei com pena e dei dinheiro.”

O pedinte ganhou notas, moedas e retirou-se. Continuei a segui-lo. Ele rumou a um bairro distante, um bairro aonde eu nunca havia estado. Conclusão lógica: “É aqui que fica a cidade dos mendigos”, festejei intimamente: “Será minha grande descoberta.”

Então resolvi falar com o homem. Precisava confidenciar meus planos de ser um esmoler de grandes qualidades. Nisso, ele correu de repente. Entrou num beco e sumiu. Tive a impressão de ter visto dois soldados da polícia em seu encalço. Com certeza ouvi gritos.

Resolvi que minha aventura deveria terminar ali e caminhei penosamente de volta à minha casa. Confesso que estava meio decepcionado com o meu infame professor, reles vigarista. 

Mas a visão de velhinhas, aleijados e mulheres cheias de filhos pedindo esmolas confirmou minha convicção de que aquelas pessoas precisavam de ajuda. E eu estava decido a ajudar a todos. 

Cheguei afinal à minha casa; quase meio-dia. Fui ao quintal e reuni tudo quanto pude em matéria de galhos secos, pedaços e madeira, carvões perdidos na areia, revistas antigas jogadas ao chão, caixões velhos, ripas e caixas de papelão e arrumei uma grande fogueira. 

Meus pais terminaram notando minhas arrumações e logo fui levado à inquisição familiar: o que era aquilo? Já não bastava brincar de índio e atirar flechas nos passantes da rua, fazer laços de caubói e puxar as outras crianças pelo pescoço como se fossem gado e quebrar pratos e vidros das janelas com as pedras de minha atiradeira?

Expliquei que meus intentos eram bons, ou seja: queria trazer meus pobres para a nossa casa. A fogueira era para fazer a comida delas. E já havia cavado um buraco no quintal, onde eles esconderiam toda noite as esmolas para não ser roubados pelos ricos. 

Todos iriam dormir no chão da casa; de manhã sairiam para pedir esmolas. Eles não iam atrapalhar ninguém na casa. Simples assim.
Meus pais ficaram perplexos. Diante de tal e lamentável projeto minha fogueira foi desfeita em dois tempos e o buraco imediatamente tapado. Mas ainda hoje penso que os pobres devem ter uma casa. E tenho certeza: toda noite os ricos roubam as suas esmolas.  

Nenhum comentário: