A flor que espanta a
tristeza numa reza
Iwska Isadora*
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Na maioria das vezes eu ficava lá durante sessenta minutos. Eu sabia
que era bem mais que uma hora, embora não fosse isso que os adultos me diziam.
Não importava a quantidade de “Ninha, é a mesma coisa”, eu tinha certeza que
teria mais tempo para observá-la daquele banquinho de madeira descascado de
azul. Era Dnele que crianças sentavam quando passavam do portão; mas se, por
sorte, nenhuma gente grande tivesse tomado conta da cadeira de balanço era pra
lá que os pequenos corriam, inclusive eu.
Ela tem nome de flor. Os olhos de dona Amarílis continuam lindos
como outrora. São eles os responsáveis por acolher todas aquelas pessoas que
batem duas ou três palmas da calçada à procura de ajuda. As mãos dela continuam
nos abençoando, fazendo o mesmo afago no rosto e uma cruz na testa, só que um
pouco mais devagar, afinal, hoje ela está com 87 anos. Eu precisava saber uma
forma de recuperar intimidade, perguntar sobre sua rotina, sobre o nome daquela
planta perto do pé-de-pião, sobre sua família, não sei. Eu apenas gostaria que
ela sentisse vontade de conversar um pouco, talvez alguns sessenta minutos
imaginários enquanto ninguém a chamava do portão. Dona Amarílis sempre foi
carinhosa, recebe muitas visitas diariamente em sua casa e sabe doar, como
ninguém, o amor do universo, que não por acaso, continua dando vida às suas
mãos mágicas.
Mãe de quatro filhos, “três criados e um no céu”, como prefere,
essa jovem menina de cabelo branco nasceu na cidade de Currais Novos, em 1928.
“Eu tinha uma mãe linda, sempre me lembro do sorriso dela chegando em casa com
a enxada na mão, e eu quando a avistava de longe, logo corria feliz da vida”,
contou. Depois do relato sobre a mãe, fitou os olhos no relógio bege de parede,
e por lá ficaram. Parecia que à medida que os ponteiros avançavam, ela revivia
o tempo que passou junto à figura materna. Não demorou e emocionada: “eu queria
abraçar minha mãe novamente”.
Dona Amarílis só usa roupa florida. Eu só me atentei para isso
porque sua filha mais velha, que mora com a mãe até hoje, passou entre a gente
com uma pequena pilha de roupa que provavelmente tinha acabado de tirar do
varal e resolveu me contar. Agradeci mentalmente pela preciosa informação que
eu acabara de receber. Olhei para os seus braços que carregavam as roupas e
comprovei. Eram vestidos de algodão, com flores miúdas, um de cada cor. A filha
mais velha de dona Amarílis se chama Gardênia, o que me fez pensar que os
vestidos floridos tinha uma importância muito maior do que qualquer suposição
minha.
A senhora de vestido azulado e estampado com girassóis
pequenininhos, pediu para eu descansar minhas mãos em cima das pernas. Não se
pode cruzar pés ou braços durante esses minutos sagrados, porque não pode
existir nó. Segundo dona Amarílis, “ofende, minha filha.” Em passinhos curtos e
demorados, ela chega até mim juntando em uma mão, três folhas de arruda. Pronta
para receber sua benção, respiro fundo ao som de um canário pra lá e pra cá na
gaiola, fecho os olhos e é quando onde tudo começa.
Desde os 22 anos, quando perdeu sua mãe por “uma febre alta”,
iniciou a vida de curandeira, ainda em Currais Novos. Aprendeu sobre as melhores
plantas para curar e as rezas para sarar tudo quanto é doença. Nenhum dia
Amarílis deixou de atender alguém, exceto quando ficou internada poucos anos
atrás devido à pneumonia, consequência de uma gripe mal curada. “Eu nunca
neguei benzer uma pessoa porque eu acho que a gente tá nessa terra pra se
ajudar, né? E se alguém bate na minha porta me procurando é porque essa pessoa
precisa”. Seja o que for, dor de cabeça, espinhela caída, buxo virado,
fraqueza, gripe, diarreia, mal olhado de homem e de mulher, dona Amarílis cura.
Mas se você agradece pelos cuidados, “não agradeça a mim não, agradeça a Deus
que é quem toma conta de tudo.”
Um enorme reservatório amoroso em um metro e meio. Comecei a sentir
isso desde a primeira vez em que fui benzida. Ela sempre conseguia toda a
atenção, embora eu tivesse quatro anos e ela não soubesse que eu já era uma
criança completamente encantada com tanto cuidado dedicado às pessoas que
batiam palmas no portão. A casa dela sempre foi cheia, de gente, de planta, de
pé de arruda, de pé-de-pião, de lágrimas, de doentes, de cura.
Sempre tinha
cura. Sempre. Dona Amarílis diz até hoje, “se você se preocupa somente com a
ferida da carne é capaz de não ter resultado, mas se você acredita que o
tratamento é feito de dentro para fora, de acordo com sua fé e com seu
merecimento, sua alma fica boa e você fica curado. Eu sempre disse isso para as
pessoas, e elas sempre acreditaram. Acho que por isso deu certo, né?” Sim, dona
Amarílis.
A vontade de querer ajudar os outros através da reza surgiu da
admiração pela avó materna, que fazia a mesma coisa com as mãos mágicas e
calejadas, escancarando a força da mulher do sertão. Ela sempre achou muito
bonito sua avó rezar segurando folhas, dizer um bocado de palavras que mal se
pode ouvir, acompanhadas por infinitos bocejos até a hora do “amém”. Um dia,
resolveu acompanhar sua mãe na roça, onde encontrou uma moça muito bonita que
flutuava e sorria com uma flor na mão. Perguntei se não sentiu medo, ela
balançou a cabeça dizendo que não, e completou dizendo: “Mia fia, a gente sente
quando é uma coisa boa. Nessa vida, a gente só precisa ter atenção”. Depois
desse dia não demorou para a febre visitar sua mãe e deixar Amarílis carente do
abraço que tanto lhe faz falta até hoje.
Como um estalar de dedos, alguém bateu palmas. Era a visita que eu
esperava desde quando cheguei à casa de dona Amarílis, mesmo sem saber se
viria, qual era o nome e todo o resto. Sem agenda, as visitas chegam a qualquer
hora e aguardam sua vez numa pequena fileira de cadeiras misturadas com
tamboretes. As pessoas apenas respeitam a hora do cochilo depois do almoço e
quando anoitece. Antes de me levantar para abrir o portão, ela olhou para mim
como se o chamado da pessoa do lado de fora não tivesse interrompido nossa
conversa. Disse que sentiu vontade de benzer as pessoas depois que viu sua mãe
morrer e não pôde fazer nada. “Ela teve febre e eu não pude ajudar. Eu perdi a
companhia de minha mãe aqui na Terra, mas pedi a Deus no dia do velório que me desse força pra ajudar nas febres dos outros. A maior tristeza de minha
vida passou a ser o melhor caminho que eu podia escolher.”
Sorri com muita água salgada nos olhos e alisei seu cabelo
escorrido antes de me levantar para abrir o portão. Eu não conseguia pensar em
muita coisa. Além do exemplo de amor que ela sempre foi para mim, só restava
mais amor para a pessoa que iria sentar e aguardar esperançosamente a reza de
dona Amarílis, como todos fazem. Me despedi com o coração na mão, igual à moça
que ela avistou segurando uma flor há muitos anos. Falei que voltaria e prometi
ficar sessenta minutos, porque uma hora nunca bastou. Amarílis, que enfeita a
vida de flor, me deu um abraço. O abraço do acolhimento desde que resolveu
florir a vida de todo mundo.
Nunca dê um nó em seu coração, dona Amarílis, porque ofende.
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*Iwska Isadora é aluna do curso de Comunicação Social da UFRN,
habilitação jornalismo. Texto apresentado à disciplina Oficina de Texto III,
sob nossa orientação.
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Imagem: https://www.google.com.br/search?q=horizonte&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjP4ZuzqtbJAhUEj5AKHfCICZEQ_AUIBygB&biw=1920&bih=916#imgrc=mAAm1hbyrjoHHM%3A
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