A história do Grão-Louco do Almofariz
Emanoel Barreto
Nobre Senhor,
Sede bem-vindo.
Não
sei o que vos trouxe aqui ou se precisais dos meus simples labores visto que os tempos são outros e ambientes como este estão em desuso ou
simplesmente desapareceram. O ambiente modesto onde estais , devo
informar, é uma tipografia; como já disse, superada e antiga. Era a acá
mesmo que tínheis vindo?
Ao
que vejo sim: era a acá mesmo que tínheis vindo. Entrai, pois. Sou, de
profissão, tipógrafo. Aqui ainda trabalho com papel feito de trapos,
sendo este o melhor que existe digo de passagem e com certo afã. Esta
profissão se me foi herdada d'um velho monge, que há muito morreu, e que em
seu monastério mantinha uma prensa d'onde tudo aprendi .
Mas,
vinde, vinde. Vede os meus tesouros. Desculpai, a iluminação é baça; é
que ainda uso velas, velas de sebo, pois este ambiente é antigo e
assim o exige. É que os meus fantasmas, nobres impressores, seres
pertinentes, jamais aceitaram que assim não o fosse.
Mas,
eis os meus tesouros: as minhas caixas, aprumadas no cavalete. Caixa
alta e caixa baixa e seus respectivos caixotins. Letras maíusculas,
caixa alta; minúsculas, caixa baixa. Letras lapidadas pelos melhores
artesãos de França. Letras das mais diversas e trabalhadas famílias
tipográficas. Ricas, belas, expressivas. Muitas deles imprimiram Hugo,
Balzac e Zola, tenho certeza. Quanta honra senhor, quanta honra, não é
mesmo?
Mas,
quereis algo? Alguma impressão a essa hora? Não? Apenas conhecer o que
faço e como vivo? Dir-vos-ei: moro aqui, aqui vivo, aqui trabalho.
Ali, minha enxerga, donde me alcanço estirado, altas horas da noite.
Mais adiante, um velho e pequeno fogão. Ao lado da cama é onde guardo
os meus andrajos.
E
o que imprimo? Tolices, senhor, tolices. Como em tempos quase já
imemoriais lanço ao papel corantos, avisos, gazetas. Neles conto
histórias fabulosas: o dragão que surgiu do mar e devorou toda uma
aldeia pesqueira; flamejante mulhar que voa em vassoura e atormenta
alguma vila perdida em confins; batalhas de grandes cavaleiros,
histórias de damas tão gentis, versos de menestréis e viandantes,
contos para adormecer crianças e coisas de monstros horrendos. De tudo o
que o humano engenho inventivo já imaginou aqui nasce na força destas
letras.
Se
alguém ainda os compra? Não, senhor. Ninguém. Ninguém compra o que
escrevo. E assim depois de andar o dia inteiro sem ganhar sequer um
só ceitil, retorno ao meu tugúrio. Antes porém, de voltar, ando por
arrabaldes deserdados. Ali encontro quem me leia. Aproximam-se de mim
os desprimorosos e os desvalidos, os aleijados, os tronchos, os
alienados e os sem-destino, as súcias e os mandriões. Biltres e velhacos
são o meu público.
A
eles entrego de graça o que escrevo. E formam-se implausíveis clubes
de leitura: cada um que queira ler mais alto e com entonações as
estórias que redijo. E como em suas vozes noturnas tudo aquilo se torna
galante e de bom feitio. Declamam e empostam os dizeres. Acendemos
fogueiras, discutimos as lendas e os mitos, acreditamos em tudo o que
escrevi e para nós está tudo muito bom; e após todo o falariço nos
despedimos com mesuras e até amanhãs.
Volto
então feliz e realizado. Chego, abro a forte porta que protege esta
cave e então me tranco. Aqui vivo um silêncio antigo, pesado; silêncio
que abraça e protege as coisas que ainda vou escrever.
Como?,
o senhor quer um texto? Vou já, senhor, já vou compor. Demora um
pouco, pois cada letra é retirada ao seu ninho, ao seu caixotim, para
vir repousar na rama. Vou escrever-vos uma hstória: a história do
Grão-Louco do Almofariz. O que isso quer dizer? Não, não sei: a ideia
vai-me brotando aos poucos, ganha vida e dirige meus dedos. Confiai.
Ficará boa a história, muito boa. Como disse, demora um pouco. Meus
dedos já não têm tanta agilidade. Enquanto trabalho podeis achegar-vos
ao catre e dormir. Quando acordardes, estará pronta a história. Boa
noite, senhor. Boa noite. Grato por terdes vindo... Vou começar a escrever...
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