domingo, 27 de abril de 2014

A noite em que velei o sono de um santo

O Novo Jornal dá em sua edição de hoje grande destaque à canonização do Papa João Paulo II que esteve em Natal em outubro de 1991. Em sua coluna o jornalista Carlos Magno Araújo faz um registro da cobertura que fiz: uma noite inteira vigiando a casa onde o Papa dormiu. Acompanhou-me um repórter-fotográfico pé quente: Marcus Ottoni.

Para relembrar o assunto republico texto datado de 23 de julho de 2013, quando viera ao Brasil o Papa Francisco. Segue:

A vigília ao Papa e o atentado que não aconteceu
http://www.jp2.org.br/conferencia-sobre-beato-joao-paulo-ii.html (meramente ilustrativa)

A visita do papa Francisco lembrou-me a vinda a Natal do papa João Paulo II, em 1991. Naquela época eu estava no Diário de Natal, dirigindo a editoria de Cidades, e recebi a incumbência de passar a noite em vigília nas imediações da casa onde ele iria pernoitar, em Ponta Negra.  Motivo para tanto: em reunião com o superintendente Albimar Furtado, o editor-geral Vicente Serejo e a chefe de redação Margareth Martins temíamos que o papa, em local tão desprotegido, pudesse ser vítima de algum atentado. Ele já tinha sido atacado em Roma, imagine em Natal... Diante disso, tomou-se a precaução: um jornalista ficaria atento a tudo o que pudesse acontecer.

Na companhia do repórter-fotográfico Marcus Ottoni segui para o local de minha vigilância: uma residência desocupada, taticamente ocupando ponto privilegiado de observação. Detalhe: eu não tinha autorização do esquema de segurança para fazer a cobertura. As credenciais eram poucas e tinham sido destinadas aos repórteres e, como eu era editor, por consequência não tinha credencial. Marcus Ottoni, sim.

E às seis da noite meti-me num carro do jornal e começamos o trajeto até Ponta Negra, saindo do Diário, que ficava na Deodoro. Incrível como foi fácil passar pelas patrulhas que estavam na área. Ninguém nos parou, nada de pedido de explicações, não se exigiram identificação ou autorização para a cobertura. 

Chegamos ao local cerca de vinte minutos depois e fomos direto para a casa. Tinha início ali uma das mais longas noites da minha vida: a espera por algo que, de coração, não desejávamos que acontecesse, ou seja: dois jornalistas vivendo o paradoxo de pedir   que não houvesse o que noticiar.

Ottoni encontrou uma cadeira velha e desconjuntada na varanda da casa. Você já deve ter percebido que passaríamos a noite ao relento. A casa nos havia sido cedida, mas de portas fechadas, percebe? Assim, preparamo-nos para o que desse e viesse. No meu caso, até mesmo uma eventual prisão por estar, sem autorização, uma área de segurança. Eu era, literalmente, um invasor. 

Marcus Ottoni fixou obsessivamente a objetiva na casa e ficamos ali, parados, tendo ao fundo o som do mar e o céu profundo. As horas se passavam com a lentidão de um tempo manco. Como não tinha nada a registrar comecei a anotar pequenos acontecimentos, registrando a hora em que se davam.

Assim, olhe: às dez horas um casal passou de mãos dadas na praia; meia hora depois um barco pesqueiro, pequeno, chegou à praia; uma hora depois  ouvimos passos de coturnos pisando firme no pavimento de pedra e comentamos: “OK. Agora vamos ser presos.” Mas foi alarme falso; a tropa passou, deixando de lado aquela casa que, tecnicamente, seria “suspeita”.

Como nada mais acontecia além desses acontecimentos mínimos tentei dormir, deitado no chão. Terrível experiência; sem travesseiro não dá. Nem tente tal loucura, se algum dia for obrigado a tão dura vivência. Ao fundo, o barulho das ondas quebrando na praia chegava a ser aterrador aos meus ouvidos cansados. A repetição interminável doía: entrava cabeça adentro e se transformava em uma tortura. Afinal, já de manhãzinha, uma estrela cortou o céu e anotei: seis e meia da manhã, zuniu uma estrela. 

Pronto, pensei, terminou o tormento. Nesse instante houve uma movimentação de tropas. Os soldados, lado a lado, formavam uma rede humana de homens armados, correndo em direção à praia. Pensamos: só pode ser coisa séria. E preparamo-nos: olhamos para o mar, temerosos de ver a qualquer momento um barco ou algo que o valesse vindo rapidamente em direção à praia para algum tipo de ataque ao papa.
Rebate falso: os soldados apenas formavam um cordão de isolamento. E por um motivo simples: o papa havia se acordado e iria sair até a varanda da casa onde estava. E então aconteceu: João Paulo II chegou à varanda e começamos a gritar: “Pa-pa! Pa-pa! Pa-pa!”

Nesse momento a varanda da casa onde estávamos havia sido invadida por um batalhão de repórteres do Rio e São Paulo, para flagrar o acontecimento. Não sei como, mas eles haviam descoberto nosso esconderijo. Lá chegando ficaram espantados com aqueles dois loucos tresnoitados e queriam saber: “Vocês estavam aqui? Passaram a noite... aqui?!!!”
“Sim”, foi a resposta.
“Vocês são loucos?”
“Sim”, garantimos. 

E os jornalistas passaram também a gritar ao papa que, virando-se para nós, lá de onde estava, acenou com os dois braços. 

Estava terminada a missão. Voamos para o jornal. Eu para redigir a matéria a quente, Ottoni para o ritual da revelação dos filmes e produção das fotos. Terminei o texto lá para as oito da manhã e fui para casa. Às seis da noite preparei-me para voltar ao jornal. Agora para editar todo o meu trabalho.

Quando ia saindo, minha filha mais nova, espantada com aquele trabalho maluco do pai, perguntou: “Meu Deus, papai: de novo?”

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