domingo, 10 de novembro de 2013

Uma história de fantasmaS



“Desculpe; não sabia que você tinha morrido”
Ontem encontrei com um amigo meu que havia morrido anteontem. Cumprimentou-me e agradeceu por eu haver comparecido a seu velório: “É nessas horas que a gente conhece um amigo”, afirmou em lágrimas. Respondi: “Que é isso, meu caro? Jamais deixaria de ir a seu enterro”, e o abracei.
 
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Ele agradeceu e seguiu em frente. Por puro instinto de repórter eu o segui. Mais adiante ele encontrou outro amigo. Meio sem jeito o cara disse: “Rapaz, desculpe: não pude comparecer a seu velório. Não deu, sabe? Precisava tomar uns uísques com Martins. Sabe Martins? Aquele que é representante de laboratórios, coisa de remédios, receitas, essas coisas? Ele me chamou para beber e não tive como recusar.”

O falecido respondeu: “Problema não, cara. O importante é que você ficou bêbado. Você ficou bêbado?”

O outro respondeu: “Claro. Fiquei bêbado. Bebíssimo! E até ergui um brinde a você. Isso não é importante?: levantar um brinde ao amigo que partiu?”

“Claro”, respondeu o falecido. “É nessas horas que a gente conhece quem nos quer bem.”

E o falecido continuou. A cada esquina encontrava quem não tinha ido a seu velório. As desculpas eram sempre as mesmas: tinha havido algo importante, sumamente importante, que havia impedido o comparecimento à cerimônia fúnebre.  O morto, serenamente, agradecia e dizia compreender: tinha problema não.

E seguiu adiante. Passou-se o tempo e sempre todos diziam que fora impossível comparecer à cerimônia, chorar, consolar a viúva. Na verdade não apenas passou-se o tempo: passaram-se anos. Anos, anos e anos. Até que enfim eu morri: quase ninguém esteve no meu velório. Fui levado ao túmulo. E, pelo menos os poucos que compareceram, tocaram numa velha vitrola de LP uma de minhas músicas favoritas: Paint it black. Que, você sabe, é dos Rolling Stones, não é mesmo?

Dia seguinte saí, do mesmo modo que o meu amigo morto, a caminhar pelas ruas. Em cada esquina havia sempre alguém a se desculpar e apresentar desculpas. Como ele, perdoei a todos e compreendi os seus motivos: um não tinha ido porque estava de férias; outro, porque tinha uma festa; mais um porque estava feliz demais para viver aquele momento de dor; e aqueloutro porquê, sei lá porquê...

Admitindo as limitações da natureza humana respeitei os motivos de cada um. Mas, no íntimo, sentia o desapreço, o esquecimento, o fora. Continuei a caminhar. Então, nos arrabaldes da cidade, encontrei meu amigo. Aquele que, no começo desta história, já havia morrido. 

Lembrei que ele também não havia comparecido a meu enterro. Olhei fixamente em seu olhar e perguntei: “Mas, até você? Até você? Você, que sabe o que é ser desprezado, esquecido, lastimavelmente esquecido? Você, que já morreu e foi miseravelmente abandonado? Você, que foi amigo, que emprestou dinheiro que nunca recebeu? Você, que foi solidário, protetor, corajoso, defensor de quem estava na cadeia por ser comunista nos tempos do golpe de 64? Não dá para entender... Eu sou desse tempo, e fui a seu enterro. Por que você não foi ao meu?”

Ele, olhando para o chão, disse: “Desculpe, estou morto. Quando a gente morre as coisas mudam. Eu tinha mais o que fazer...”

Eu disse: “Não dá para desculpar.”

E ele: “Dá sim. Você é que não entendeu: quando nascemos já estamos mortos. Apenas não percebemos.”

Nesse momento compreendi tudo, a efemeridade da vida, a vanidade do instante. Fui dominado por uma alegria escura e pesada. Peguei o cara pelo ombro e disse: “Tá oquei, bicho. Tá tudo certo. Vamos tomar uma cerveja. Vamos comemorar o que somos.”

Entramos num bar. Bebemos. Não pagamos a conta e saímos pela porta dos fundos. Éramos dois fantasmas. Não devíamos nada a ninguém e e fomos embora.


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