“Desculpe; não sabia que você tinha morrido”
Ontem encontrei com um amigo
meu que havia morrido anteontem. Cumprimentou-me e agradeceu por eu haver
comparecido a seu velório: “É nessas horas que a gente conhece um amigo”,
afirmou em lágrimas. Respondi: “Que é isso, meu caro? Jamais deixaria de ir a
seu enterro”, e o abracei.
Ele agradeceu e seguiu em
frente. Por puro instinto de repórter eu o segui. Mais adiante ele encontrou
outro amigo. Meio sem jeito o cara disse: “Rapaz, desculpe: não pude comparecer
a seu velório. Não deu, sabe? Precisava tomar uns uísques com Martins. Sabe Martins?
Aquele que é representante de laboratórios, coisa de remédios, receitas, essas
coisas? Ele me chamou para beber e não tive como recusar.”
O falecido respondeu: “Problema
não, cara. O importante é que você ficou bêbado. Você ficou bêbado?”
O outro respondeu: “Claro.
Fiquei bêbado. Bebíssimo! E até ergui um brinde a você. Isso não é importante?:
levantar um brinde ao amigo que partiu?”
“Claro”, respondeu o falecido. “É
nessas horas que a gente conhece quem nos quer bem.”
E o falecido continuou. A cada
esquina encontrava quem não tinha ido a seu velório. As desculpas eram sempre
as mesmas: tinha havido algo importante, sumamente importante, que havia impedido
o comparecimento à cerimônia fúnebre. O
morto, serenamente, agradecia e dizia compreender: tinha problema não.
E seguiu adiante. Passou-se o
tempo e sempre todos diziam que fora impossível comparecer à cerimônia, chorar,
consolar a viúva. Na verdade não apenas passou-se o tempo: passaram-se anos.
Anos, anos e anos. Até que enfim eu morri: quase ninguém esteve no meu velório.
Fui levado ao túmulo. E, pelo menos os poucos que compareceram, tocaram numa
velha vitrola de LP uma de minhas músicas favoritas: Paint it black. Que, você sabe,
é dos Rolling Stones, não é mesmo?
Dia seguinte saí, do mesmo modo
que o meu amigo morto, a caminhar pelas ruas. Em cada esquina havia sempre alguém
a se desculpar e apresentar desculpas. Como ele, perdoei a todos e compreendi os
seus motivos: um não tinha ido porque estava de férias; outro, porque tinha uma
festa; mais um porque estava feliz demais para viver aquele momento de dor; e
aqueloutro porquê, sei lá porquê...
Admitindo as limitações da
natureza humana respeitei os motivos de cada um. Mas, no íntimo, sentia o
desapreço, o esquecimento, o fora. Continuei a caminhar. Então, nos arrabaldes da cidade,
encontrei meu amigo. Aquele que, no começo desta história, já havia morrido.
Lembrei que ele também não
havia comparecido a meu enterro. Olhei fixamente em seu olhar e perguntei: “Mas,
até você? Até você? Você, que sabe o que é ser desprezado, esquecido, lastimavelmente
esquecido? Você, que já morreu e foi miseravelmente abandonado? Você, que foi
amigo, que emprestou dinheiro que nunca recebeu? Você, que foi solidário,
protetor, corajoso, defensor de quem estava na cadeia por ser comunista nos
tempos do golpe de 64? Não dá para entender... Eu sou desse tempo, e fui a seu
enterro. Por que você não foi ao meu?”
Ele, olhando para o chão, disse:
“Desculpe, estou morto. Quando a gente morre as coisas mudam. Eu tinha mais o
que fazer...”
Eu disse: “Não dá para
desculpar.”
E ele: “Dá sim. Você é que não entendeu:
quando nascemos já estamos mortos. Apenas não percebemos.”
Nesse momento compreendi tudo,
a efemeridade da vida, a vanidade do instante. Fui dominado por uma alegria
escura e pesada. Peguei o cara pelo ombro e disse: “Tá oquei, bicho. Tá tudo
certo. Vamos tomar uma cerveja. Vamos comemorar o que somos.”
Entramos num bar. Bebemos. Não pagamos
a conta e saímos pela porta dos fundos. Éramos dois fantasmas. Não devíamos
nada a ninguém e e fomos embora.
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