domingo, 19 de junho de 2011

Na Tribuna do Norte, coluna de Woden Madruga, encontro texto extraordinário, de inventiva certeira como flecha de Guilherme Tell. É a respeito da intetona da Copa do Mundo. Segue: 
http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.apoio-sp.org.br/porta

A Copa e os sonhos de Vereda

No meio da semana cai na bacia das almas um bilhete de Florentino Vereda dando conta de uma passagem rápida por Natal e se desculpando por não ter tido tempo para um papo na Ribeira, apesar da vontade danada de rever o mestre Gaspar na calçada famosa do Cova da Onça. Estava fazendo uma baldeação (vinha do Tocantins) para o Arquipélago do Cabo Verde e a TAP só lhe tinha dado cinco horas de trânsito, mal dava para chegar em Lagoa Nova e pegar na casa de certo parente um livro de Luiz Romano que fala sobre os escritores cabo-verdianos, entre eles o Manoel Lopes, também poeta, uma de suas leituras preferidas (“E porque o teu coração encerra / a saudade do mar e a saudade da terra / - tua ilha é grande”). Na volta da África (iria até ao continente) marcaria um encontro na Bella Napoli. Gostaria de conhecer o poeta Volontê “e outros artistas natalenses”.

No bilhete, Vereda encaminha um texto que escrevera na véspera de vir para Natal, na noite friorenta que se derramava pelo Jalapão. Fala sobre a Copa do Mundo e um sonho que tivera nos cerrados. Vai na íntegra:

“Meu caro Woden:

Bom leitor que você é, certamente já leu ‘A interpretação dos sonhos’, de Sigmund Freud – que não entendia de churrascos nem de maracutaias, mas conhecia bem as desumanidades da mente humana. Pois bem: semana passada tive um sonho grotesco que – se me permite – gostaria de comentar agora.

Final da Copa de 2014. Por razões que só os sonhos podem explicar, jogam em Natal, as seleções do Irã e dos Estados Unidos. Natal está prestes de presenciar um acontecimento histórico, que poderá definir para sempre o conflito milenar entre muçulmanos e cristãos.

Antes do jogo, desfiles e alegorias dignas de Joãozinho Trinta, que nada tem a ver com um parente ilustre que compõem as hostes governistas locais. Desfiles alegóricos, lembrando fatos históricos desta brava terra de Poty. Motoboys ensanguentados e mutilados distribuem, aos espectadores, as pizzas cozinhadas em fornos das câmaras e assembleias legislativas. Pela passarela do Carnatal desfilam blocos multicores: verdes, vermelhos, rosados e outras tantas cores que ofuscam os olhares extasiados do público amontoado nas arquibancadas.

Há gente de todas as espécies: enfermos que, em macas e cadeiras de roda, abandonaram as filas dos hospitais; adolescentes – quase crianças – que deixaram os sinais onde ganham e perdem avida; funcionários públicos que interromperam as greves intermináveis e inexplicáveis. Palhaços, saltimbancos e malabaristas representam o povo em geral. Ninguém quer perder o espetáculo. Sapos barbudos cospem na plateia, em atitude de escárnio e desprezo.

Na preliminar jogam os times das penitenciárias de Alcaçuz e de Mossoró, que são estrepitosamente ovacionadas pelos seus fãs, lobistas que vieram de Brasília para torcer por seus times e seus ídolos e garantir a sua parte no butim. De repente, milhões de borboletas verdes – com as asas manchadas de rosa – passam esvoaçando sobre o novíssimo estádio, são atacadas por esquadrões de “aedes egypti” e somem dentro dos buracos que não puderam ser tapados por falta de recursos, todos desviados para a obra faraônica.

Embora o tempo regulamentar já se tenha se esgotado, o juiz não se decide a encerrar a partida. A bola continua a correr e os jogadores querem a sua parte. Cada gol marcado é multiplicado por vinte, sem que se consiga explicar o motivo.

Cada minuto a mais representa alguns milhões de dólares, mostrados no placar eletrônico, para delírio da torcida, que não se apercebe que os seus bolsos estão ficando mais vazios.

Terminado o jogo, foguetões explodem, mas, ao invés de luzes, muito sangue derramado, misturado ao leite roubado da merenda escolar. Em lugar dos estrondos retumbantes, choros de crianças mal nascidas, abandonadas nas ruas, cujo destino não passará dos semáforos da Prudente de Morais ou das calçadas da Roberto Freire. A pólvora queimada cheira a crack e oxi, consumindo os cérebros carcomidos dos adolescentes, outrora conhecidos como ‘futuro da pátria’.

Mas aí já é tarde, Inês é morta e o show deve continuar.

A FIFA não pode faltar com os inúmeros compromissos assumidos.

E eu, então, acordei com o barulho da implosão do Machadão, em cujo terreno serão sepultados o bom senso e a decência. Na lápide, uma frase singela: ‘Do alto desta arena quarenta ladrões me contemplam’.

Um abraço sonolento de seu admirador,

Florentino Vereda”

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