terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

A mordaça dos loucos, o silêncio da imprensa

Antigamente as coisas eram piores.
Só que, depois, foram piorando mais um pouco.”
(Paulo Mendes Campos)

Início dos anos 80, eu chefiava a reportagem da Tribuna do Norte e tive a oportunidade de conviver com uma jovem e talentosa repórter, Josimey Costa, e com um instável, mas também genial fotógrafo, Paulo Barossi, um rapaz que um dia fazia fotos espetaculares, mas, dia seguinte, furava a pauta e, na falta de um bom material, me dizia, estendendo a mão cheia de fotografias velhas: “Veja aí, Barreto, lá no arquivo tinha isso.”

Pois bem: certa vez, pautei a dupla para uma matéria no Hospital João Machado, o Hospital Colônia, para constatar suas condições de funcionamento. Eles foram, mas chegando lá, foram barrados na portaria. Eu pensei: “O que o pessoal do hospital tem a esconder? Aí tem coisa...”

E dei a seguinte ordem a Josimey e Barossi: “Vistam-se de branco, como se fossem acadêmicos de medicina e revirem aquele hospital. Vamos ver o que de tão ruim há, para ser oculto.”

Eles foram. Foram e viram tudo o que se passava no hospital. À entrada, sequer foram perturbados e, lá dentro, deram um show de jornalismo investigativo, jornalismo de flagrante. Juventude e decisão de fazer jornal de denúncia, jornal a favor do ser humano, jornal contra a humilhação dos pobres, loucos e desvalidos.


Eles foram e viram seres humanos reduzidos a condições miseráveis, doentes nus jogados em camas imundas, doentes perambulando como almas penadas, pessoas presas em celas gradeadas. Doentes estendendo-se as mãos, como que tentando, através do contato físico, compensar o tratamento humano e necessário a que tinham direito, mas ao qual não tinham acesso.

Se a loucura é uma forma de dor, e se a dor é condição mais presente da condição humana, de alguma forma somos todos loucos. Mas os deserdados da loucura, em sua autenticidade solitária, ali não tinham direito ao gesto afetivo, ao abraço longo, ao carinho amigo.

O Colônia era um inferno. Uma espécie de campo de concentração de pessoas mentalmente insanas levadas à indigência. Era um espetáculo dantesco. Estava aí o motivo pelo qual o Colônia era um tabu, um local secreto, fechado, impossível de dar acesso aos olhos de imprensa. Mas, a decisão dos repórteres em fazer a matéria era tamanha, que eles literalmente se fizeram invisíveis aos olhos dos funcionários e médicos e vasculharam tudo.

Andaram por salas, corredores, perpassando todo o horror do hospital. As fotos, em preto e branco, capturavam toda a dramaticidade daqueles instantes de sofrimento e abandono. Até que... foram descobertos. Estavam avançando sobre a cozinha, quando alguém afinal desconfiou e os flagrou. Ali, finalmente descobertos, após a magnífica matéria, foram identificados como jornalistas e retirados.

Ainda bem que não houve qualquer retaliação violenta dos funcionários do hospital contra os repórteres. A dupla voltou, vibrando, com uma produção digna de qualquer grande publicação: pela indignação do conteúdo do texto que Josimey produziu e pelas fotos de Paulo Barossi trouxe - creio que essas fotos ainda hoje existem no arquivo da Tribuna.

Denúncia pura, brutalidade flagrada, desumanidade exposta aos olhos da cidadania.

Só que (também decepção para mim), a direção do hospital intercedeu junto ao comando supremo da Tribuna e a matéria simplesmente foi parar na cesta seção (o cesto de papel, onde na época, eram jogados os textos imprestáveis).

Na época eu também era jovem e vi esfumaçar-se num acordo de diretores todo o esforço de uma talentosa tarde jornalística.
Nota do redator: creio que, hoje, o hospital esteja em melhores condições.

2 comentários:

Anônimo disse...

Barreto,isso para mim é jornalismo: aquele que revela ao leitor o que o poder tentar esconder a todo custo - ainda mais se tratando da defesa de deserdados, inocentes.
A Tribuna também censurou uma matéria minha, sobre um concurso fraudado da polícia, no qual "passou" um candidato filho de um poderoso que, anos depois, veio a assassinar uma criança indefesa. Essa história, entretanto, eu conto depois. Abraço.

Anônimo disse...

Barreto,isso para mim é jornalismo: aquele que revela ao leitor o que o poder tentar esconder a todo custo - ainda mais se tratando da defesa de deserdados, inocentes.
A Tribuna também censurou uma matéria minha, sobre um concurso fraudado da polícia, no qual "passou" um candidato filho de um poderoso que, anos depois, veio a assassinar uma criança indefesa. Essa história, entretanto, eu conto depois. Abraço.
PS.: na mensagem anterior saiu como "anônimo".
Pôxa, eu me chamo Francisco Duarte Guimarães!