sábado, 17 de junho de 2023

 Ainda há monstros que querem o Brasil com medo

 Por Emanoel Barreto

Já mencionei aqui, há algum tempo, o livro “História do medo no Ocidente”, de Jean Delumeau. Ali se fala desde o medo em sua forma genérica, sentimento primário básico, até sua manifestação coletiva ante pestes, movimentos sediciosos, crendices religiosas e poder imposto às massas, perseguição a grupos e minorias. 

Diz o autor, a partir do entendimento de que o medo é parte integrante do poder, que este, por sua vez, dá a falsa sensação de segurança e desejável ordem. E quando tal poder entra em falência alardeia que após sua queda virá o caos: "O vazio de poder é um fenômeno ambíguo. Deixa livre o caminho de forças que permaneciam comprimidas enquanto a autoridade era sólida. Abre um período de permissividade. Desemboca na esperança, na liberdade, na permissão e na festa."

O poder opressor simula que afiança a paz social, mas, na verdade, garante apenas o dia seguinte morno e calmo, o silêncio da submissão, a tranquilidade resignada, mansidão de idiotas. A opressão não busca a esperança, a liberdade, a permissão, a festa. Tomando-se um fato concreto, era exatamente o contrário disso o que queriam os carrapatos de quartel após a queda de Bolsonaro: impor uma ditadura bolsonarista como forma de governo, a concórdia da sujeição, a sucumbência dos adversários, a ameaça, o “cale-se!”.  

Para os bolsonaristas o não-Bolsonaro seria o que Delumeau chamou de “vazio de poder”. E isso seria inaceitável aos fanáticos.

E continua o autor: "Não secreta [o vazio de poder], apenas o medo. Libera também o seu contrário. Como negar, no entanto, a carga de inquietação que encerra? Ele cria uma vertigem; é ruptura com uma continuidade; logo, com a segurança. É portador de amanhãs incertos  que serão talvez melhores ou talvez piores que ontem."

Tudo isso é verdade. O cárcere, aqui como figuração do poder opressor, passa a ser visto também como refúgio. Para muita gente isso é bom. Então, que se desse o poder de volta ao derrotado.

A palavra medo traz em sua essência simbólica a ligação desse sentimento com a vitimização prévia de quem está amedrontado por sentir-se fraco e incapaz frente a um desafio ou ameaça.

O medo, todavia, é algo de que não se pode falar sempre como gerador de comportamento de submissão ou covardia, espanto ou humilhante frouxidão. A partir dele, enfrentando-o, pode-se fazer a sua superação.

 O medo começa a ser vencido quando, de forma amadurecida, é tomado como objeto de estudo, analisado e observado racionalmente para agirmos de forma precavida, atentos, sensatos, previdentes e, acima, de tudo, firmes na decisão de enfrentar esse mesmo medo. Podemos adestrar nossa coragem a partir do temor que sentimos.

O lamentável é deixar-se dominar irracionalmente pelo apavoramento. Domine sua fronte cabisbaixa e você conhecerá a força, que não é necessariamente o poder do braço forte, mas a resiliência do autoconhecimento e da serenidade.

Nos sistemas políticos embasados no autoritarismo ou especialmente nas ditaduras, inquietação e ansiedade são essenciais à manutenção dessa ordem, atendendo aos desejos do maioral mandão, bruto e facinoroso.

É aí que o medo difuso se torna aliado do sistema de poder e instala entre os ignorantes e os simples, os conservadores e os charlatães da política todo o seu potencial de tornar a sociedade um rebanho a ser tocado, tangido e marcado a ferro.

O desequilíbrio emocional do indivíduo, o temor de ser denunciado ou de erguer a voz torna-se como que um visgo que gruda as pessoas à incerteza e as faz calar-se e agir conforme se espera de um pusilânime. Claro, os espertalhões lucram com essa servidão. Querem unir as pessoas pela sucumbência, para a partir daí fazê-las sentir-se sozinhas e desamparadas, como se estivessem em meio ao frio e à total escuridão.

Uma multidão de silêncios amplia o poder dos brutos e lhes dá mais força para criar ciladas e ardis que controlam vontades e impõem uma certa forma de verdade que cassa a palavra e libera o pavor. 

O enfrentamento do medo de forma sóbria e tática constitui-se em elemento essencial ao cimento da resistência e do reconhecimento de que a coragem vem do treinamento da vontade e do desmascaramento dos que usam a dominação como chicote e escudo.

Vencendo-se o medo podemos suplantar o capataz do terror e o pregoeiro da desgraça; superando-se o medo caminhamos e cantamos e seguimos a canção. O medo só é precioso aos monstros. É preciso suplantar a onda de ódio que persiste no pós-Bolsonaro, resquício do surto patológico de comunicação que o levou ao Poder.

Para que tal tragédia acontecesse foi necessário uma base pré-existente, um pensamento calcificado, fossilizado em segmentos conservadores da sociedade, que, exortados pelo discurso da brutalidade, encaminhou quase a metade do país a acreditar que vivíamos um tempo de perigo, e que o comunismo - sempre o comunismo -, estaria à solta ameaçando a liberdade, a família, os bons costumes.  

Esse discurso tosco foi suficiente para atiçar e embasar os mais primários argumentos dos incapazes de interpretar a realidade de forma competente e equilibrada. Isso desatou os nós da brutalidade e elevou Bolsonaro aos mais altos estatutos da estupidez, aclamada bom-senso. Deu no que deu.

Agora é preciso manter pulso firme ante os que insistem em cavar buracos de medo e incertezas, subterrâneos de pânico e desespero para restabelecer a desordem como ordem imperante. Diante disso não podemos esquecer: ainda há monstros que querem o Brasil com medo.

 

 

 

 

 

 

 

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