Ainda há monstros que querem o Brasil com medo
Por Emanoel
Barreto
Já mencionei aqui, há algum
tempo, o livro “História do medo no Ocidente”, de Jean Delumeau. Ali se fala
desde o medo em sua forma genérica, sentimento primário básico, até sua
manifestação coletiva ante pestes, movimentos sediciosos, crendices religiosas
e poder imposto às massas, perseguição a grupos e minorias.
Diz o autor, a partir do
entendimento de que o medo é parte integrante do poder, que este, por sua vez, dá
a falsa sensação de segurança e desejável ordem. E quando tal poder entra em
falência alardeia que após sua queda virá o caos: "O vazio de poder é um
fenômeno ambíguo. Deixa livre o caminho de forças que permaneciam comprimidas
enquanto a autoridade era sólida. Abre um período de permissividade. Desemboca
na esperança, na liberdade, na permissão e na festa."
O poder opressor simula que afiança
a paz social, mas, na verdade, garante apenas o dia seguinte morno e calmo, o
silêncio da submissão, a tranquilidade resignada, mansidão de idiotas. A opressão
não busca a esperança, a liberdade, a permissão, a festa.
Tomando-se um fato concreto, era exatamente o contrário disso o que queriam os carrapatos
de quartel após a queda de Bolsonaro: impor uma ditadura bolsonarista como
forma de governo, a concórdia da sujeição, a sucumbência dos adversários, a
ameaça, o “cale-se!”.
Para os bolsonaristas o
não-Bolsonaro seria o que Delumeau chamou de “vazio de poder”. E isso seria
inaceitável aos fanáticos.
E continua o autor: "Não
secreta [o vazio de poder], apenas o medo. Libera também o seu contrário. Como
negar, no entanto, a carga de inquietação que encerra? Ele cria uma vertigem; é
ruptura com uma continuidade; logo, com a segurança. É portador de amanhãs
incertos que serão talvez melhores ou
talvez piores que ontem."
Tudo isso é verdade. O cárcere, aqui
como figuração do poder opressor, passa a ser visto também como refúgio. Para muita
gente isso é bom. Então, que se desse o poder de volta ao derrotado.
A palavra medo traz em sua
essência simbólica a ligação desse sentimento com a vitimização prévia de quem
está amedrontado por sentir-se fraco e incapaz frente a um desafio ou ameaça.
O medo, todavia, é algo de que não
se pode falar sempre como gerador de comportamento de submissão ou covardia,
espanto ou humilhante frouxidão. A partir dele, enfrentando-o, pode-se fazer a
sua superação.
O medo começa a ser
vencido quando, de forma amadurecida, é tomado como objeto de estudo, analisado
e observado racionalmente para agirmos de forma precavida, atentos, sensatos,
previdentes e, acima, de tudo, firmes na decisão de enfrentar esse mesmo medo.
Podemos adestrar nossa coragem a partir do temor que sentimos.
O lamentável é deixar-se dominar
irracionalmente pelo apavoramento. Domine sua fronte cabisbaixa e você
conhecerá a força, que não é necessariamente o poder do braço forte, mas a
resiliência do autoconhecimento e da serenidade.
Nos sistemas políticos embasados
no autoritarismo ou especialmente nas ditaduras, inquietação e ansiedade são
essenciais à manutenção dessa ordem, atendendo aos desejos do maioral mandão,
bruto e facinoroso.
É aí que o medo difuso se torna
aliado do sistema de poder e instala entre os ignorantes e os simples, os
conservadores e os charlatães da política todo o seu potencial de tornar a
sociedade um rebanho a ser tocado, tangido e marcado a ferro.
O desequilíbrio emocional do
indivíduo, o temor de ser denunciado ou de erguer a voz torna-se como que um
visgo que gruda as pessoas à incerteza e as faz calar-se e agir conforme se
espera de um pusilânime. Claro, os espertalhões lucram com essa servidão.
Querem unir as pessoas pela sucumbência, para a partir daí fazê-las sentir-se
sozinhas e desamparadas, como se estivessem em meio ao frio e à total
escuridão.
Uma multidão de silêncios amplia
o poder dos brutos e lhes dá mais força para criar ciladas e ardis que
controlam vontades e impõem uma certa forma de verdade que cassa a palavra e
libera o pavor.
O enfrentamento do medo de forma
sóbria e tática constitui-se em elemento essencial ao cimento da resistência e
do reconhecimento de que a coragem vem do treinamento da vontade e do
desmascaramento dos que usam a dominação como chicote e escudo.
Vencendo-se o medo podemos
suplantar o capataz do terror e o pregoeiro da desgraça; superando-se o medo
caminhamos e cantamos e seguimos a canção. O medo só é precioso aos monstros. É preciso
suplantar a onda de ódio que persiste no pós-Bolsonaro, resquício do surto
patológico de comunicação que o levou ao Poder.
Para
que tal tragédia acontecesse foi necessário uma base pré-existente, um
pensamento calcificado, fossilizado em segmentos conservadores da sociedade,
que, exortados pelo discurso da brutalidade, encaminhou quase a metade do país
a acreditar que vivíamos um tempo de perigo, e que o comunismo - sempre o comunismo
-, estaria à solta ameaçando a liberdade, a família, os bons costumes.
Esse
discurso tosco foi suficiente para atiçar e embasar os mais primários argumentos
dos incapazes de interpretar a realidade de forma competente e equilibrada. Isso
desatou os nós da brutalidade e elevou Bolsonaro aos mais altos estatutos da
estupidez, aclamada bom-senso. Deu no que deu.
Agora
é preciso manter pulso firme ante os que insistem em cavar buracos de medo e
incertezas, subterrâneos de pânico e desespero para restabelecer a desordem
como ordem imperante. Diante disso não podemos esquecer: ainda há monstros que querem
o Brasil com medo.
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