O gol do centrefó
Por Emanoel Barreto
De
repente veio a lembrança do Colégio São João. O colégio e seus dois
campos de futebol. Anos 60. O colégio era uma lembrança grande, larga
como o passado. O primeiro campo, verdadeiro forno com seu chão de areia
calcinada, servia para partidas improvisadas. O outro campo, não:
gramado, com medidas oficiais, era usado para prélios renhidos,
jogadores com posições definidas. Os professores eram os técnicos.
Era
o tempo de Pelé, Vavá, Zagalo, Garrincha, Gilmar, Djalma Santos, Didi,
Nilton Santos. O Brasil bicampeão. Goleiros eram chamados de goalkeeper,
valendo também guarda-valas, mas também se aceitava dizer arqueiros.
O
menino tinha uma decisão: entrar para o time da classe e disputar o
campeonato do colégio. Munido de uma vontade secreta e firme começou a
treinar. Depois de muito esforço foi aceito no time. E mais: ia ser o
“centrefó”. Quando o professor anunciou sua posição no time, ele quase
caiu. Já pensou? Ele ia ser o centrefó. Era o máximo.
A
expressão inglesa center for ward, absolutamente impronunciável para
aqueles meninos dos anos 60 acabou virando isso mesmo, centrefó. Ele
jamais imaginaria que, anos depois, todos estariam chamando centrefó
de... centro-avante.
E
ele ia ser o centrefó. A posição na equipe, vista como algo quase
heróico, o jogador avançado que rompia defesas com seus dribles mágicos,
era o sonho afinal realizado. Chegou em casa, contou aos pais, riu e,
na rua, com os colegas, gritou: – Eu sou o centrefó! Eu sou o centrefó!
Era o sonho calçando chuteiras. Sentiu-se completo. A vitória
antecipada. O gol, guardado na gaveta das vontades, afinal iria brotar
dos seus pés.
Veio
então o jogo. Antes de entrar para a equipe principal ele somente havia
jogado no campo de areia. Era o que os meninos chamavam de futebol de
poeira. Ali, ninguém tinha posição definida, os pés afundavam e cada
chute levantava uma nuvem, daí o nome futebol de poeira. Detalhe:
naquele campinho de areia, ele jamais havia marcado o “seu gol.” Mas
agora, não: faria muitos gols, e gols de classe, gols marcados num campo
de verdade.
Afinal
veio o jogo. O juiz apitou. Na tela das lembranças a partida foi
lembrada quadro a quadro. Os lances duros, as jogadas corajosas, até
mesmo aquela bicicleta que quase vira um gol. Tudo, tudo foi devidamente
revisto com os olhar retrasado da saudade. Seu time ganhou. Cinco a um.
Mas não deu para ele fazer o “seu gol”. Nem naquele jogo, nem nos
outros. Jogava bem, mas não conseguiu o gol.
A
vida escorreu sob os seus pés, acabou o ano, acabou-se o tempo de
colégio, tudo passou. O colégio São João virou aquela lembrança travada
na alma. Um dia tomou uma decisão: aquele gol não podia ser apenas uma
vontade com sabor de derrota, um passe malfeito num jogo que dentro dele
nunca tinha fim. Então, num final de tarde entrou numa loja de material
esportivo, comprou a melhor bola e dirigiu-se ao colégio.
Ali
todos estranharam ao ver aquele senhor: paletó e gravata, cabelos
grisalhos, entrando colégio adentro, segurando uma bola. Ele escolhera o
momento de maior movimentação no colégio. Era final de aula. Centenas
de meninos deixavam as salas em meio a gritos de estopim, livres de
professores chatíssimos.
Ele
cruzou a curiosidade geral como um tiro de meta batido por Bellini em 1962 e dirigiu-se ao campo.
Todos o acompanharam. Mais e mais meninos o seguiam. Ele passou pelo campo
de futebol de poeira, já seguido por uma multidão e pronto: chegou ao
campo gramado.
Dirigiu-se
à marca do pênalti e ajeitou a bola. Os meninos ficaram ao redor,
deixando a trave ao fundo. Ele estava em meio a um largo círculo de
expectativa. Todos perceberam que viviam ali um momento
especial e intenso. O rigor na face severa daquele homem, a luz do
crepúsculo, a seriedade de cada gesto seu, tudo dava à cena uma
composição litúrgica, ritual. Todos respiravam compassadamente; ninguém
entendia nada, mas havia respeito em todos os olhares.
Ele
afastou-se da bola, esperou um pouco e correu. O chute bateu na bola
com força, uma força de raiva alegre e solene. A bola partiu. Como se
fosse em câmera lenta cravou o gol no ângulo direito. Balançou a rede e
desceu, belíssima, até se esconder lá no fundo.
O estranho saltou e deu um soco no ar. Nesse instante explodiu uma fagulha de
emoção feito rastilho de pólvora. Fascinados, todos os meninos gritaram: – Gooooooooool! – e se abraçaram. Em silêncio, tal como chegara, o homem retirou-se. Deixou a bola lá, no cantinho
da rede. Ao sair, ouvia aplausos, aplausos antigos, ecos que somente
agora chegavam, tão tarde, depois de tanto tempo...
Nunca mais foi visto no Colégio São João; mas agora estava realizado; agora ele era realmente o centrefó.
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