sábado, 30 de novembro de 2013

Uma história de perigo

A agulha de prata, o veneno, a morte

Aproveitando o dia frio e cinzento, e movido por um espírito de andar a esmo fazendo nada, chamei um tílburi e mandei que o cocheiro se encaminhasse aos lados escuros da cidade, quero dizer, aos bairros pobres e desvalidos. Como tipógrafo, sei que ali sempre é possível encontrar boas e terríveis histórias para imprimir em meus corantos, avisos e gazetas. A infelicidade que ali habita é bem cheia de surpresas como o sabeis. E os infelizes vivem muitas aventuras. Todas miseráveis e intensas, bem diversas da vida que é vivida pelos chamados felizes e normais, defendidos  em sua riqueza e segurança por paredes altas e largas.


Chegando a uma praça onde o falariço era alto, retumbante espaço de malditos e patifes, reduto infame de espoliados e sofredores, mandei que o cocheiro parasse. Paguei o seu trabalho e ele se foi. Em seguida encaminhei-me entre as pessoas malcheirosas e rudes, observando as toscas artes dos malabaristas, os gritos dos bufarinheiros, as mãos estendidas de falsos aleijados, o comércio sujo de coisas pequenas, alimentos mal cozidos, gente negociando o parco almoço sórdido e gosto ruim. 


Sentei-me a um banco baixo, de pedra, e ali fiquei a observar. De repente, olhando a meu lado, encontro um papelucho cheio de garranchos, letra grosseira e grande. Quando o li descobri que se tratava de algo muito, muito interessante: era produto de uma mente insana, logo entendi. Dizia: "De como preparar o venefício de damas elegantes, de tal forma que ao morrer pareçam estar vivendo delicado e delicioso momento, ingressando na morte como quem se abraça a sonho divinal e terno."


O autor não dizia a fórmula do veneno, mas detalhava: "Deve a delicada peçonha, em seu frasco, ser tocada por ponta finíssina de agulha de prata. Ali, inexoravelmente, a secreção venenosa irá aderir. E, inoculando eu o veneno de minha arte com toque sutil na pele tenra e feminina, irá este promover em minutos e morte da senhora escolhida para ter tal e tão elegante final. Devo, para tanto, mover-me em ambiente elegante, local público, a fim de que a dama, caindo, atraia atenção mas não horrores, uma vez que terá morte requintada, encantando a todos os presentes o seu derradeiro e final desmaio. Meu objetivo é dar à morte o donaire distinto de um pequeno-grande acontecimento, o mistério que irá atrair a atenção de médicos e cientistas, atarantados com essa síncope fatal. Devo dizer que este veneno foi elaborado anos a fim, com o fito de chegar a ser poção que elide a vida com tal benignidade que sua vítima nada sofre ou sente, a não ser um leve e vago deslumbre. Minhas experiências o comprovam."

Percebi logo que se tratava, aquilo, de alguma espécie de desafio. Afinal, estava ali exposto plano periculoso, deixado naquele papel por alguém como forma de atrair quem o fosse enfrentar em sua tarefa letal. Rápido chamei um sedã que por ali passava e mandei que seguisse para o Centro, para a mais bela praça, onde se reuniam as mais elegantes e suaves damas em compras ou a passeio. 


Como um louco, passei a observar homens que pareciam em atitude suspeita, até que vi um senhor. Elegante, portava uma pasta de couro que muito lembrava a maleta de um médico. Passei a segui-lo. E ele a uma jovem mulher, elegante, finíssima. Então, quando ela se encaminhava para local onde era grande a multidão e somente se podia caminhar com grande esforço, os corpos se movendo uns contra os outros, vi: ele sacou da bolsa uma longa e reluzente agulha: a vítima era aquela senhora. 


Corri para a mulher e com grande luta a ela me abracei, empurrando-a para o lado, enquanto a mão ágil do matador procurava o seu corpo. A jovem nada entendeu e, nada entendendo, gritou. Imediatamente mil mãos masculinas me atacaram a golpes e murros. Em meio à confusão o louco tentava ferir a moça e rolamos todos no chão. Berros, brados e e imprecações cortavam os ares, todos tentando me dominar. 


Então, em meio ao tumulto, um grito maior se impôs, terrível e brutal. Era o matador. Misturado ao clamor e ao desespero, ferira-se a si próprio e queria gritar ao mundo como era doce e magnífico o seu veneno. E descrevia como a morte se lhe achegava e como era vaporosa e impressionante, jubilosa e estética a fórmula que criara: a pulsão final como prazer de Eros. E morreu. Com um sorriso, morreu. 


Fui largado da mãos que me prendiam e mostrei a todos o bilhete. A dama agradeceu-me. Antes de me retirar fui até o corpo. Nele, parecia, ainda havia uma réstia da vida que insinuava ser ele feliz em seu mergulho. 
---Desenhos de Constantin Guys

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