domingo, 4 de abril de 2010

Jessica Rinaldi/Reuters
Compre seu iPad, seja idiota e seja feliz
Emanoel Barreto
 
A jornalista Cristina Fibe, da Folha, informa de Nova Iorque:

Depois de invenções como o iPod e o iPhone, Steve Jobs, fundador da Apple, diz que agora, sim, criou um produto "mágico e revolucionário": o iPad. Versão simplificada de um laptop, o "tablet" permite navegar na internet, ler livros e gerenciar arquivos como música, fotos e filmes.


A expectativa em torno do iPad, lançado ontem nos EUA, fez com que a empresa vendesse mais de 200 mil aparelhos antes mesmo de ele chegar às lojas. Não há previsão de data para estreia no Brasil.


Segundo estimativas, no primeiro ano o iPad deve vender algo entre 2,7 milhões e 5 milhões de unidades, ao custo mínimo de US$ 499 (pouco menos de R$ 900).


Isso porque a Apple, os poucos que conheceram o iPad antes de seu lançamento oficial e a maior parte da mídia americana o propagandearam como um artefato que privilegia a simplicidade e a relação intuitiva com o consumidor.


O iPad, como o iPhone, não tem teclado ou mouse acoplados, sua tela obedece ao toque do dono. E, embora não funcione como telefone nem possua câmera, tem as outras facilidades com que os usuários do iPhone já se acostumaram, só que com mais velocidade e tela muito maior, de 24 cm por 19 cm, e só 1,25 cm de espessura.


Com acesso permanente à internet (Wi-Fi), bateria com durabilidade de dez horas e cerca de 700 gramas, o aparelho une e-mails, música, filmes, games, e-books, GPS, agenda, fotos -e, é claro, o navegador Safari e a loja do iTunes, que garante à Apple que o usuário continue rendendo mesmo depois de desembolsar mais de US$ 499 no aparelho.


O pacote causou alvoroço na mídia americana. Capa da "Newsweek" de 5 de abril questiona: "What's so great about the iPad?" -o que é tão formidável no iPad?, em tradução livre-, e responde: "Tudo".


Nas seis páginas internas, afirma que o produto "mudará o jeito como você usa computadores, lê livros e assiste à TV, desde que esteja disposto a fazê-los à maneira de Steve Jobs". A revista diz ainda que o executivo da Apple tem a habilidade para criar aparelhos "que não sabíamos que precisávamos, mas sem os quais de repente não podemos viver".


A revista "Time" chegou às bancas com o mesmo assunto na capa. Enviado em nome do veículo, o ator e comediante Stephen Fry pareceu deslumbrado depois de conversar com Steve Jobs e manipular o iPad durante dez minutos.


Ontem, o jornal "The New York Times" organizou um "live blogging" com repórteres de plantão para relatar as filas nas lojas da Apple (e na Best Buy, aonde o aparelho também chegou) e consumidores comentando o iPad.


O "Washington Post" foi um dos poucos a reagir e publicar que, com tudo isso, Steve Jobs pouco precisaria investir em publicidade -além do fato de que os jornais e as revistas também estão interessados em transformar os seus conteúdos para a leitura no aparelho.


No YouTube, consumidores postaram vídeos ontem para mostrar o iPad sendo desempacotado e fazer os primeiros comentários sobre a novidade. Entre os poucos defeitos apontados pela "Newsweek", o fato de que Steve Jobs subverte a liberdade de escolha característica da internet, fechando o sistema e obrigando os usuários a navegar no Safari e a fazer as compras no iTunes.


Outra reclamação é o fato de não ler imagens desenvolvidas com a plataforma Flash, da Adobe, responsável por cerca de 75% dos vídeos na internet. E um defeito do iPhone que por ora se repetirá: o novo computador da Apple não é multifuncional, ou seja, só é possível abrir um aplicativo de cada vez.
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O texto, a rigor um comercial disfarçado de notícia "objetiva", traz em sua - perdão pela palavra - semiose, uma espécie de cântico, um louvor dócil e delicadamente fanático: tens porque tem de comprar ao iPad, senão não serás feliz. O iPad será teu bezerro de ouro e somente a ele adorarás.

Lamentavelmente, nós, brasileiros, tristes trópicos,vira-latas do neoliberalismo e da globalização, ainda estamos sem data para a bênção de termos acesso, respeitoso e parvo, ao iPad. Mas o paraíso demora, irmãos. É preciso fé e esperança. Oremos.

Outra coisa: o comercial, enquanto texto jornalístico, falha em seu lide. Lide, para você que não é jornalista, é o primeiro parágrafo de uma notícia, aquele que, em tese, reúne o que há de mais importante em um fato e o relata de forma direta, clara e concisa.

O mais importante não é o lançamento em si, entende? E por que não? Porque o mais importante está no parágrafo que coloquei em itálico. Ou seja: que o usuários continuem rendendo aos donos da marca iPad. Está aí o "x" da questão: a criação de um mercado ávido por novidades, quaisquer novidades. E, desde que sejam ditas e tidas como importantes ("nós nem mesmo sabíamos que precisávamos"), passando a delas depender quase existencialmente.

O lide seria a denúncia da criação de um mercado cativo, o que a rigor não é mercado, pois mercado pressupõe competição entre marcas e produtos. O lide seria a exposição da faceta perversa desse processo comunicacional que em si, mercadologicamente, é um sistema de arquitetura fechada: as pessoas "precisam render" aos donos do iPod. Foram "feitas para isso": para gastar e dar lucro - e ninguém percebe nem se insurge ante essa atitude inumana, que é ao mesmo tempo tão humana.

Para encerrar: você acha que alguém, alguém que seja um leitor, um leitor na expressão da palavra, alguém que goste de livro, que veja no livro um ser vivo, um amigo, um parceiro, alguém refinado e de mente inquieta vai perder tempo "lendo" um livro nessa traquitana? Creia em Deus, amigo; creia em Deus...







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